Casal missionário ligado à Village Church enfrenta críticas no Brasil por supostamente desviar doações de comunidades amazônicas. A comunidade questiona para onde está indo o dinheiro e quem realmente se beneficia


Por André Kanasiro e Felipe Carmo | editores-chefe da revista Zelota. Publicado originalmente em colaboração com a Spectrum Magazine.

Noticiários no Brasil cobriram recentemente as tensões entre um ministério adventista independente, liderado por dois membros antigos da Village Adventist Church, em Berrien Springs, Michigan, EUA, e um grupo de ribeirinhos na floresta amazônica que estão questionando se a ajuda do ministério foi uma bênção ou uma maldição.

A ONG Global Thinkers Now (GTN), fundada por Robert e Beatriz Ritzenthaler em 2015, afirma oferecer “auxílio humanitário espiritual aos necessitados em todo o mundo, oferecendo serviços médicos e educacionais enquanto desenvolve e repara a infraestrutura de comunidades”. A pequena comunidade amazonense de Santo Antônio alega que a GTN fotografa suas famílias — especialmente crianças — sem permissão para pedir doações de apoiadores nos EUA, mas oferece pouco suporte à comunidade.

Além disso, o Estado do Amazonas está processando e investigando a GTN por construir estruturas em terras reservadas para povos tradicionais. Estas construções, que eram promovidas como espaços para auxílio médico, educação e evangelismo, agora são símbolos de divisão, batalhas legais, e desconfiança.

Para verificar estas alegações, no final de agosto nós passamos 15 horas viajando para a Amazônia — de avião, ônibus e barco — para entrevistar os habitantes locais e os líderes do ministério.

Tenho ouvido de uma terra linda, encantada

A comunidade de Santo Antônio está localizada no estado do Amazonas, no município de Novo Airão, a aproximadamente 200 km de Manaus. Fundada oficialmente em 1988, Santo Antônio é a menor das 19 comunidades ribeirinhas tradicionais na região, cujos habitantes vivem da pesca e agricultura de subsistência, assim como a coleta de produtos florestais, venda de artesanato e ecoturismo.

Mapa 1 do plano de gestão da RDS com a localização da comunidade no Rio Negro. (Plano de Gestão da RDS).

Devido à sua vulnerabilidade social, os ribeirinhos têm atraído missionários adventistas há mais de um século. A missão mais famosa é a de Jessie e Leo Halliwell, cujo trabalho médico e evangelístico dos anos 1920 a 1950 — especialmente suas histórias sobre navegar o rio Amazonas e ajudar ribeirinhos com seus barcos Luzeiro — inspiraram apoiadores e seguidores adventistas. Estes esforços missionários oficiais e independentes focam principalmente em auxílio médico, doação de alimentos, e projetos educacionais básicos. Devido a este foco humanitário e evangelístico, o número de membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) na região amazônica cresceu, criando um lugar fértil para iniciativas de discipulado, maior educação formal, e a construção de estruturas mais permanentes.

Embora a comunidade não estivesse nas profundezas da floresta para um amazonense, para nós foi uma longa viagem: um voo de cinco horas até Manaus, seguido de uma viagem de ônibus de cinco horas para a cidade de Novo Airão e uma viagem de uma hora de barco até a comunidade Santo Antônio. Navegar pelo rio era como navegar em meio a ilhas no mar. Era época de cheia, e o rio Negro — um afluente do rio Amazonas — inundava a floresta, criando várias ilhas florestais que formam um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo: o Parque Nacional de Anavilhanas. De frente para o parque fica a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), um território de propriedade do estado que foi criado em 2008 para preservar a floresta, sítios arqueológicos, e dar apoio às condições de vida das comunidades tradicionais na região — Santo Antônio entre elas.

Quando finalmente chegamos à vila de 12 famílias numa manhã de sábado como planejado — já que a maior parte dos ribeirinhos lá é parte da IASD — fomos recebidos pelo casal Marineuza Miranda Pontes e Edilson Martins Pinheiro, que estão entre os primeiros convertidos da comunidade. Marineuza, cujo avô foi um dos fundadores de Santo Antônio, foi embora da comunidade quando era menina para poder estudar. Como a escola local é pequena e só atende crianças nas comunidades da região até os 14 anos de idade, adolescentes precisam deixar suas comunidades para cursar o ensino médio. Muitos simplesmente param de estudar.

Marineuza Miranda Pontes e Edilson Martins Pinheiro estão entre os primeiros conversos na comunidade. (Foto: Felipe Carmo)

Marineuza passou a morar com a família do tio, que era adventista, e logo entrou para a IASD com 15 anos de idade. Após um ano, ela se mudou para um internato adventista local, onde conheceu o paraense Edilson. Alguns anos mais tarde, eles se casaram e se mudaram para a cidade de Novo Airão, com cerca de 20 mil habitantes — mais perto do seu lar em Santo Antônio. Ela se tornou professora; Edilson trabalhava com vendas e como vigia para as reservas ambientais da região.

Como ambos nos disseram mais tarde, era o sonho deles levar o evangelho para as famílias de Santo Antônio — todas aparentadas umas às outras por laços de sangue ou matrimônio. O casal ia todo final de semana para a comunidade fazer o culto — às vezes levando consigo um pastor e membros de uma comunidade próxima. Com o tempo, mais e mais parentes entraram para a IASD. Marineuza nos disse que, após muitos anos de trabalho missionário, “85%” dos comunitários se tornaram adventistas.

Após ganharem um edital do governo para construir algumas casas comunitárias, incluindo uma pequena biblioteca e uma loja para vender artesanato, e com promessas de que os missionários da GTN lhes construiriam uma nova igreja, os ribeirinhos transformaram sua antiga igreja de madeira em um museu da comunidade. No entanto, a igreja prometida pela GTN permanece inacabada, e os adventistas locais continuam tentando arrecadar recursos para completá-la por conta própria. No sábado em que estávamos lá, o grupo adventista chamado “Maranata” tinha se reduzido a quatro participantes, dos quais dois eram Edilson e Marineuza. 

Quando chegamos à comunidade, vimos casas modestas de madeira espalhadas pelo território. Mais tarde, vimos uma casa grande que levava a uma mansão gigantesca de dois andares protegida do resto da comunidade por uma cerca e a selva a seu redor.

A Casa Silva

As casas e todo o resto que impactou Santo Antônio começaram em 2015, quando um pastor adventista local, Marcio Greick, apresentou Marineuza e Edilson a Beatriz e Robert Ritzenthaler.

Fazendo uma visita ao Amazonas, o casal de Michigan lhes disse que tinha feito viagens missionárias à região no passado por meio da GTN, sua organização sem fins lucrativos. De acordo com Marineuza e Edilson, os Ritzenthaler disseram que queriam construir uma casa na comunidade para apoiar o trabalho missionário da GTN na região.

“Ela [Beatriz] falou que queria uma base, porque como eles fazem missão, vem médico, vem dentista, então traz toda uma aparelhagem, fica difícil de atender o povo no barco,” nos contou Marineuza. Na verdade, a proposta a princípio ia além de viagens missionárias ocasionais. “A proposta seria que tem bastante médicos nos Estados Unidos que já se aposentaram e que poderiam ficar permanente dando essa assistência na base” à comunidade Santo Antônio e às comunidades vizinhas. “A comunidade concordou, porque é uma coisa boa, né? Aqui a gente não tem presença de médico constante,” continuou Marineuza. Santo Antônio recebe uma visita mensal de agentes de saúde, que pesam os moradores e distribuem remédios; qualquer atendimento adicional, incluindo emergências, precisa ser procurado em Novo Airão — um trajeto que leva uma hora de barco, e ainda mais durante a estação seca.

No dia 15 de junho de 2015, a associação de moradores, chamada Associação de Produtores Agrícolas da Comunidade de Santo Antônio (APACSA) — presidida por Edilson — votou a doação de um terreno de 50×100 metros da comunidade para a GTN. Um terreno grande para os padrões locais, já que casas para famílias individuais não excedem 20×30 metros.

Em uma série de vídeos do YouTube apresentados no site da GTN — e que foram tirados do ar — Robert, que é o presidente da GTN, discutiu essa época, confirmando vários detalhes compartilhados por Marineuza. Em um dos vídeos, ele oferece maiores detalhes sobre a construção da casa. “Depois que fizemos isso, começou a entrar dinheiro para o projeto; exatamente nove meses depois do dia em que oramos na propriedade, nós tínhamos uma casa missionária,” disse ele. A casa foi chamada de “Casa Silva” em homenagem ao pai de Beatriz, que sonhava em fazer trabalho missionário na Amazônia. A maior parte da construção foi feita sob a liderança de Edilson enquanto os Ritzenthaler estavam nos EUA, vindo uma vez com a mobília e 40 pessoas para inaugurar a casa.

Enquanto a casa estava sendo construída, os Ritzenthaler permaneceram nos EUA, vindo uma vez com móveis e 40 pessoas para inaugurar a casa.

Nos anos seguintes, a Casa Silva seria usada duas vezes por ano. Os Ritzenthaler traziam médicos, dentistas e voluntários numa viagem missionária de uma semana durante o primeiro semestre, e voltavam sozinhos no Natal para distribuir cestas básicas às famílias locais. No entanto, durante a maior parte do ano, a casa gigantesca não era utilizada.

Edilson e Marineuza ajudavam os Ritzenthaler diretamente durante as visitas. Helane Souza, parente de Marineuza, disse: “Eu fui lá uma vez durante uma viagem missionária da GTN, e minha prima Marineuza passava vários dias cozinhando para eles enquanto a Beatriz e o Robert ficavam com os amigos dos EUA na sala.” Helane, que não vive em Santo Antônio mas sempre visita sua família lá, lembrou de uma vez em que Edilson tentou participar da conversa dos americanos. “Ele fez umas piadas e a Beatriz interveio, avisando que ele ‘não iria pro céu’ com aquele tipo de humor,” ela compartilhou. Durante as viagens missionárias, Marineuza acordava às 4:30 para ajudar na cozinha. “Ela trazia cozinheira, mas só uma pessoa para trabalhar para 40, né? Não dá.” Ela, Edilson e outros ribeirinhos ajudavam até a limpar a casa, antes, depois e durante a estadia dos Ritzenthaler. Tudo de graça. “Era aquele sentimento de missão, a gente realmente achava que era missão, né? Para trabalhar para Deus,” disse Marineuza.

Um lugar onde a felicidade é total

Entretanto, enquanto a Casa Silva permanecia desocupada, surgiam tensões. O uso da casa não era permitido ao longo do ano, mesmo que fosse o único lugar em Santo Antônio com internet rápida e — desde 2021 — energia solar. Toda a comunidade permanecia limitada ao uso de um gerador que fornecia energia das 18:00 às 21:00; o governo recentemente forneceu painéis solares às famílias da comunidade.

Em uma das vezes, ao descobrir que os ribeirinhos estavam carregando seus celulares nas tomadas externas da casa, a GTN retirou todas elas. Ao explicar por que a casa só podia ser usada pelos Ritzenthaler, Beatriz dizia “que a casa era consagrada pra missão”, afirmou Marineuza.

No dia 12 de janeiro de 2017, uma notificação extrajudicial enviada pelo procurador do Estado do Amazonas afirmava que a propriedade da Casa Silva por parte de uma organização estadunidense representava uma “invasão de imóvel público protegido ambientalmente”, dando 30 dias para que a GTN deixasse a propriedade. No dia 23 de março, a GTN registrou um CNPJ para a filial brasileira, com Edilson como seu representante. Ele se tornou o vice-presidente e o diretor financeiro da filial brasileira da GTN, sua residência em Novo Airão listada como sede da organização. Como disseram os advogados da APACSA posteriormente no processo, uma forma de “dar uma aparência de legalidade à ocupação ilegal de imóvel público”.

Em um dos vídeos da GTN no YouTube, Robert pintou uma imagem mais otimista da percepção da Casa Silva. Ele afirmou que “a comunidade sente que esse lugar também é deles”, acrescentando que “eles se sentem donos” da casa. Nem Edilson, nem a comunidade tinham autorização para usar a casa.

Enquanto a Casa Silva permanecia desocupada, surgiram tensões. O uso da casa pelos moradores não era permitido durante o ano todo. (Foto: Felipe Carmo)

Edilson e Marineuza consideravam os Ritzenthaler como amigos próximos, e frequentemente recebiam presentes deles. “A Beatriz me deu esse celular,” Marineuza nos mostrou. “Ela também trazia camisas da Adidas para o Edilson.” Além disso, após não conseguirem um visto estadunidense para Marineuza e Edilson, os Ritzenthaler os levaram numa viagem para o Egito.

No entanto, esta amizade custou a Marineuza e Edilson seu relacionamento com a própria família e outros comunitários. “Houve um conflito com o meu irmão… a gente bateu boca porque eles falavam que a ONG tinha tinha a obrigação de ajudar a comunidade,” confessou Marineuza. Seu irmão se mudou com a família para fora da comunidade devido ao conflito, assim como outra família.

Mas a despeito de atritos ocasionais, a GTN ainda tinha apoio da comunidade, devido às viagens missionárias e ao respeito que Marineuza e Edilson inspiravam. “Eles pensavam: ‘Não é possível que o Edilson tá dentro de um troço desse que vai querer prejudicar a gente,’” disse Marineuza.

Os Ritzenthaler continuaram aparecendo duas vezes por ano. No primeiro semestre eles traziam outros para uma experiência missionária de uma semana. No recesso de Natal, o casal vinha por conta própria. Em 2020, a pandemia de COVID-19 interrompeu o padrão. Retornando em 2021, os Ritzenthaler estavam prontos para fixar ainda mais raízes na comunidade.

Querem bálsamo daquele porto encontrar

Em 2021, os Ritzenthaler abordaram Edilson e Marineuza com uma nova proposta — a construção de uma escola profissionalizante.

“Quem que não quer uma proposta dessa?,” afirmou Marineuza, referindo-se à sua reação na época. “Eu já pensei no meu filho, né? De ter que tirar ele daqui, porque ano que vem ele vai ter que sair daqui [para continuar os estudos]. Tá com 14 anos.” No dia 16 de julho de 2021, após ouvir pessoalmente a proposta de Beatriz, a APACSA aprovou a doação de um lote de 30×50 para a GTN construir “quatro salas de aula, uma cozinha, três banheiros e varanda a fim de oferecer cursos diversos sem custo”, segundo a ata da reunião. Edilson era o secretário da APACSA. A ata manuscrita tinha um detalhe adicional. “Sr. Edilson solicita a permissão de todos os sócios desta comunidade para a construção de uma casa para a senhora Beatriz Augusta e seu esposo. Tal construção será do lado das salas de aula.” Ambos os pedidos foram aprovados.

No entanto, o plano de manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável é claro: somente novas famílias aparentadas com os ribeirinhos por laços sanguíneos ou matrimoniais podem se mudar para uma comunidade ribeirinha local e viver nela. Além disso, as plantas apresentadas pelos Ritzenthaler aos doadores via vídeos do YouTube davam outro nome ao projeto da construção: ao invés de uma escola, seria uma “casa de hóspedes”.

Àquela altura, Marineuza e Edilson também estavam se mudando de Novo Airão para Santo Antônio. “Nós nos mudamos para a casa dos meus pais, porque meu pai estava doente e a gente dar o suporte pra ele,” disse Marineuza. Ambos também queriam se mudar para lá de modo a dar mais suporte à GTN e ao trabalho missionário. Chegando na comunidade, Edilson e Marineuza intensificaram os esforços missionários e organizaram uma conferência evangelística em 2022, com um pastor e um evangelista da região. A conferência foi um sucesso, e muitos dos comunitários restantes se batizaram. Foi nessa época que a quantidade de adventistas chegou ao ápice, com aproximadamente 85% dos habitantes de Santo Antônio sendo membros batizados da IASD.

Aproximadamente nessa época, Dennis Paige, ex-pastor associado da Village Church, visitou Santo Antônio com os Ritzenthaler. Como resultado, Paige anunciou que faria doações mensais à GTN para que Edilson pudesse ter um salário mensal por seus esforços e gastos missionários. Marineuza e Edilson começaram a receber aproximadamente R$ 1.600,00 todo mês como salário. Eles começaram a usar parte do valor para cobrir os gastos com lanches semanais que organizavam para os cultos de pôr-do-sol às sextas-feiras, algo que ambos pagavam com o próprio dinheiro.

Aprofundando ainda mais seu relacionamento, os Ritzenthaler convidaram Marineuza e Edilson para morar na Casa Silva enquanto supervisionavam a construção da segunda casa.

A nova estrutura gerou estranhamento entre os habitantes devido à construção e aos materiais pouco convencionais segundo padrões locais. Enquanto todas as outras construções na comunidade são feitas de madeira, a segunda casa da GTN era de alvenaria, e a vegetação local foi queimada para abrir espaço para a construção. Isso aumentou as tensões já existentes. “Minha cunhada fazia todas as denúncias” para agências do governo, contou Marineuza. Mas ela defendia a GTN: “Eles vinham aqui e a gente dizia que é uma missão, é isso aí é para para o bem da comunidade.”

Refletindo hoje, Marineuza disse: “Mas no fundo, no fundo, eu já falava para ele, isso está errado.”

No início de 2023 a segunda casa foi concluída — uma enorme e estranha estrutura em Santo Antônio. Enquanto a Casa Silva, de madeira, só ocupava parte de sua propriedade, a segunda construção ocupava todo o lote que lhe foi alocado. E uma vez terminada, os Ritzenthaler vieram e rapidamente se instalaram nela.

De repente ficou claro: o que os ribeirinhos pensavam que seria uma escola para a comunidade na verdade seria o novo e gigantesco lar dos Ritzenthaler. “Eles vieram com dois barcos para trazer a mudança,” incluindo “esse piano que pesava uma tonelada,” contou Marineuza.

Além disso, as duas viagens missionárias naquele ano estavam focadas em arrumar a casa nova dos Ritzenthaler. Dali em diante, disse Marineuza, Beatriz “saía da Casa Silva e ia pra casa dela. E quando não era na casa dela, era na Casa Silva”. A Casa Silva, que é o único ponto de acesso para a casa dos Ritzenthaler, foi cercada, fechando áreas que não foram doadas à GTN. Câmeras foram instaladas.

Muitas pessoas tinham opiniões e até histórias sobre como as novas cercas e câmeras cercando as duas casas tinham impactado as vidas delas. Uma pequena pimenteira brotou no quintal dos Ritzenthaler e um dos ribeirinhos passava para pegar umas pimentas e usar na própria comida. Após ver isso pelas câmeras, Beatriz arrancou a pimenteira, levou-a até a família do ribeirinho e a entregou para ela.

No início de 2023, o segundo prédio foi concluído. O que os moradores pensavam ser uma escola comunitária era, na verdade, a enorme nova casa dos Ritzenthaler. (Foto: Felipe Carmo)

Rubeldimar Barroso, Ana Cláudia Santos da Silva, e suas três filhas, são os vizinhos mais próximos dos Ritzenthaler. Seu acesso direto ao rio Negro foi bloqueado pela cerca construída em torno da Casa Silva. Mas eles continuavam cruzando a cerca para chegar ao rio — para o desespero de Beatriz. “Teve um torneio [festa] aqui, aí a nossa família toda veio pra cá,” nos contou a filha mais velha, agora com 16 anos. “O pessoal queria tomar banho… ela [Beatriz] tinha interditado a parte da frente, colocou um monte de corda, aí eles desceram lá pelo outro porto.” Ana Cláudia concluiu a história: “A Beatriz apareceu e perguntou, ‘Tão gostando do meu porto?’ Minha tia respondeu, ‘Ah, o porto é seu?’, e aí ela ficou calada, porque ela sabe que o porto não é dela.” Ainda assim, o grupo foi nadar em outro lugar.

Para nós que visitávamos, sendo tratados com hospitalidade pelos ribeirinhos, essa segurança e vigilância demonstravam algo profundamente cultural na relação entre os Ritzenthaler e as pessoas que eles deveriam ajudar.

Cobra Norato

Na noite que passamos na comunidade, uma tempestade amazônica súbita encharcou tudo e se dissipou. Conforme as nuvens desapareciam, o céu se revelou — tão densamente habitado quanto a selva abaixo de si. Ao nosso redor, os sapos coaxavam em coro, macacos-da-noite chamavam das árvores, e um dos ribeirinhos nos dizia que ouviu uma onça no caminho de volta para a vila.

Os ribeirinhos então começaram a nos contar uma história enraizada na cultura amazônica.

“Tinha uma cobra gigante chamada Norato que queria virar homem,” começaram os comunitários.

Norato, explicaram os narradores, podia sair de seu corpo reptiliano e andar como homem durante a noite. Mas sua carcaça imensa de serpente ficava por perto, cercando a vila em que Norato estava como uma muralha. Quebrar a maldição exigia um ritual perigoso: que alguém jogasse leite materno na boca da serpente e a decapitasse com uma lâmina virgem enquanto Norato caminhava em forma humana.

Enquanto escutávamos, as lâmpadas de energia solar se apagaram — já passava das 21h, e as baterias fornecidas pelo governo tinham seus limites. A escuridão nos cobriu rapidamente.

O final de uma das versões da história ficou em nossas cabeças, mito em formação: “Um dia, um soldado finalmente criou coragem e tirou a maldição da Norato. Mas ele ficou doido.”

Após o fim da história, os ribeirinhos desapareceram nas sombras de suas casas de madeira enquanto observávamos o rio Negro. O breu em sua superfície, inundando silenciosamente a floresta, refletia as estrelas acima como um segundo céu.

Para nós, em Santo Antônio, a lenda de Norato ofereceu perspectiva. A GTN também chegou como uma presença estrangeira que poderia ser feita “humana” ao se integrar com a comunidade. Ao invés disso, ela se apegou à própria carcaça — restringindo recursos, acumulando poder, e cercando a comunidade.

A respeito da cerca, Diego Dias da Silva, biólogo e cunhado de Marineuza, disse que “foi uma situação muito desconfortável para os ribeirinhos. Aqui não tem cerca, e todo mundo visita a casa de todo mundo sem avisar, porque é uma comunidade unida.”

Priorizando a propriedade privada ao invés da vida em comunidade, os Ritzenthaler permaneceram propositalmente às margens, recusando-se a descamar seu modo de vida americano e integrar-se à comunidade que agora ocupam em Santo Antônio. “É quase um insulto aos ribeirinhos,” acrescentou Diego.

O conflito financeiro

Ao final de 2023, começaram a aparecer rachaduras dentro da GTN. A princípio animados com a chegada dos Ritzenthaler, a insatisfação de Marineuza Edilson cresceu conforme eles perceberam que o casal estrangeiro não estava tão interessado em evangelizar a região quanto o imaginado.

“A Beatriz estava sempre cansada,” disse Marineuza, que continuava a organizar cultos de pôr-do-sol e sábado de manhã enquanto o casal estrangeiro estava arrumando a casa ou cansado demais para tomar a frente, mesmo na lição da escola sabatina. Depois de algum tempo, a pedido de Edilson e Marineuza, os cultos começaram a ser realizados na casa dos Ritzenthaler.

No entanto, havia pouco da colaboração missionária prometida. “Nunca chegavam com a gente para organizar um evangelismo” nas comunidades vizinhas ou “pegar os barcos pra fazer uma visita missionária. Era só ‘vamos caminhar no beiradão, amiga’. Esse aqui nem ia porque ficava bravo,” riu Marineuza, apontando para Edilson. Além disso, não havia mais viagens missionárias com médicos para a comunidade, e aumentavam as reclamações dos comunitários.

A gota d’água para as tensões que cresciam entre os Ritzenthaler e a comunidade foi dinheiro. Edilson descobriu que Beatriz, usando recursos da GTN, estava pagando dois comunitários para cuidar da casa pessoal do casal — uma empregada e um homem encarregado de serviços gerais.

“Eu sendo tesoureiro, e se vier uma auditoria?”, perguntou Edilson. Listado oficialmente como diretor financeiro da GTN, ele seria responsabilizado no caso de uma auditoria, pois todas as transações da organização eram em tese aprovadas por ele. “Até hoje tô esperando ela me responder como ela conseguia fazer esses pagamentos,” disse Edilson.

A conversa a respeito do assunto degringolou. “Beatriz se ofendeu, disse que ela era a presidente,” afirmou Edilson. Ela também queria outro pedaço de terra para fazer uma horta. “Eu respondi que ela não tinha mais um palmo de terra,” disse ele.

Este suposto uso pessoal de recursos da GTN contrastava com a percepção local dos Ritzenthaler. Em 2017, os comunitários organizaram um mutirão para construir um píer na entrada da vila. De R$3.000,00, a GTN ajudou com R$600,00. Em 2022, quando o gerador da comunidade quebrou — ameaçando até o abastecimento de água potável, que dependia de uma bomba d’água — a GTN só ajudou com R$ 200,00 de um total de R$ 600,00. “A gente tinha que estar mendigando para ela,” afirmou Marineuza. Mesmo a construção da nova igreja, com a qual os Ritzenthaler tinham prometido ajudar, mal tinha começado.

Alguns dias após a discussão, ambos os casais se reuniram na Casa Silva. Os Ritzenthaler disseram que, após se aconselharem com o conselho da GTN, decidiram remover Edilson da organização, supostamente por três motivos: sua falta de envolvimento com a missão, sua posição na liderança da APACSA, e ele atender turistas locais antes de atender Beatriz e Robert. “Eu até ponho para ele: ‘Mas vem cá, você tem teu emprego? Tem. Quem que é envolvido 100% nessa missão aqui? Me diz.’”, contou Edilson. Em sua série de vídeos no YouTube, os Ritzenthaler compartilharam mais sobre seus empregos e sua compreensão do que significa dedicação à missão: “Eu sou fotógrafo comercial e designer gráfico,” disse Robert. Beatriz dá aulas de piano. “Como nós temos empregos em tempo integral e ainda assim dizemos que fazemos missões em tempo integral? Todo minuto em que não estamos trabalhando, geralmente estamos fazendo algo na área de missões,” disse Robert no vídeo.

“Eles até citaram passagem bíblica, disseram que a gente tinha que se separar igual Silas e Barnabé,” disse Edilson. Segundo ele, os Ritzenthaler também se ressentiam pelo casal local tomar a frente na organização de eventos evangelísticos e pedir que a próxima missão da GTN focasse na construção da nova igreja ao invés da casa dos dois.

Em um culto gravado na Village Church durante 2024, agora indisponível online, os Ritzenthaler ofereceram sua versão dos eventos. “Eles começaram a sentir um pouco de inveja,” disse Robert, sem mencionar Marineuza e Edilson pelo nome. “Eles disseram: ‘Eu não acho que vocês entendem quem manda aqui. Vocês precisam garantir a nossa permissão para tudo.’ Nós ouvimos e dissemos: ‘Achamos que vocês estão entendendo errado a posição de vocês.’ […] Nós contamos o que estava acontecendo ao nosso conselho, e eles disseram: ‘Essa pessoa precisa sair.’”

Essa foi a última vez em que os quatro se reuniram desacompanhados. Dois advogados logo entraram em contato com Edilson em nome de Beatriz, dizendo que ele e Marineuza precisavam deixar a Casa Silva e oferecendo R$ 5.000,00 para ajudá-los a se restabelecer em outro lugar. Ao recusarem a oferta, uma reunião foi marcada para o dia 4 de janeiro de 2024 — não em Santo Antônio, mas no Fórum de Novo Airão. O casal foi para a reunião e encontrou todo o conselho da GTN reunido online, assim como dois advogados acompanhando os Ritzenthaler. “Minhas pernas tremiam mais que vara em correnteza,” brincou Marineuza.

Beatriz agora afirmava que Edilson nunca apresentou relatórios financeiros satisfatórios para a filial brasileira, e exigia que ele o fizesse antes de ser forçado a passar seu cargo para Moisés dos Santos, que já estava na sala. No entanto, Marineuza nos contou outra história. “Não tinha uma missão que a Beatriz não sentasse com o Edilson, pegasse todas as notas, recibos, tudo, passava quase uma tarde como a gente está reunida aqui. A Bia fazendo o relatório dela e o Edilson também fazendo o relatório dele.” Edilson afirma ainda ter guardados todos estes recibos e documentos. “Durante nove anos você aceitou isso aqui. E como é que de uma hora para outra tu não quer mais aceitar aquele papel?”, perguntou Marineuza.

Segundo a ata, a reunião terminou com a GTN retirando seu pedido pela prestação de contas de Edilson, um pagamento parcelado de R$ 25.000,00 para ele, e sua remoção da GTN e da Casa Silva. Em troca, Edilson afirmou que não processaria a GTN de forma alguma. A reunião também votou para transformar a Casa Silva em uma escola de música, arte e línguas estrangeiras, assim como o endereço formal da ONG ao invés da casa de Edilson em Novo Airão.

Uma pianista na selva

Sem Edilson e Marineuza para mediar entre os Ritzenthaler e os ribeirinhos, o relacionamento entre eles se deteriorou rapidamente. A descoberta de que a GTN estava usando fotos e vídeos não autorizados dos comunitários para arrecadar dinheiro nos EUA piorou a situação. Em um dos vídeos da GTN, Robert afirmava querer arrecadar US$ 1.200,00 mensais para Edilson, Marineuza e seus dois filhos — um dinheiro que a família jamais recebeu. O vídeo também incluía gravações dos Ritzenthaler distribuindo lanches na escola local, algo que, para os comunitários, poderia induzir doadores a pensar que esta era a escola da GTN. Até mesmo gravações de uma agente de saúde do governo em atendimento foram incluídas nos vídeos apresentando as atividades missionárias da GTN.

No fim do vídeo, um “termômetro de doações” mostrava que eles haviam arrecadado aproximadamente US$ 15.000,00, e tinham um alvo de US$ 40.000,00.

Um “medidor de doações” em um vídeo mostrou que eles arrecadaram aproximadamente US$ 15.000 de sua meta de US$ 40.000. (Captura de tela de vídeo)

A transferência do endereço permanente da GTN para Santo Antônio finalmente motivou a empresária Helane, prima de Marineuza, a agir. “Eu não podia deixar isso acontecer,” disse ela. Uma das principais opositoras da permanência da organização na vila, ela considerava que essa transferência consolidaria ainda mais o poder da GTN sobre terras da comunidade. No dia 11 de fevereiro de 2024, Helane convocou uma assembleia da APACSA para criar um “modelo de autorização do uso de imagens da comunidade e dos comunitários” e revogar a transferência do endereço permanente da GTN para a comunidade. O documento da APACSA agendou a assembleia para o dia 3 de março.

Alguns dias antes da assembleia, Evânia Costa Muller, uma adventista de Novo Airão que é parte do conselho da GTN e trabalha no fórum da cidade, chegou em Santo Antônio com um juiz local — eles tinham um almoço marcado com os Ritzenthaler. O visitante incomum foi notado por vários comunitários. “Compraram até aquela minha vasilha,” contou Rubeldimar — o ribeirinho que vive mais perto das casas dos Ritzenthaler e vende artesanato em madeira com sua família.

Em um culto da Village Church, diretamente do púlpito, os Ritzenthaler deram mais detalhes sobre seus conflitos com os comunitários e a visita do juiz a Santo Antônio. “As pessoas estavam vasculhando minhas redes sociais e criticando cada palavra que eu digo, procurando em cada foto para encontrar um problema nela,” disse Robert. Beatriz interveio. “No Brasil nós ainda temos leis, mas eles acham que estão acima da lei, tentando, na comunidade, aprovar uma lei de que ‘você está proibido de ter outra escola aqui’. É quase uma tirania,” refletiu ela.

“Nós temos apoio em muitas instâncias governamentais,” afirmou Robert.

“Mas nós vimos milagres das mãos de Deus,” continuou Beatriz. “Um juiz veio à nossa casa porque ouviu que tinha uma pianista no meio da selva com um piano clássico. Isso não é muito comum na Amazônia. Esse juiz se convidou para nos ver e nos ouvir tocar, e pediu que orássemos por ele. E depois de ouvir a história de tudo que aconteceu, ele nos disse: ‘Não se preocupem. O juiz está do seu lado.’” A história dela foi seguida por um “amém” alto dos bancos da igreja.

No dia 1º de março, o mesmo juiz que visitou Santo Antônio emitiu uma liminar contra a APACSA, proibindo a associação de discutir a permanência da GTN em Santo Antônio sob uma pena de multa diária de R$ 200,00; a liminar também agendou uma audiência de justificação prévia para o dia 16 de abril, convocando ambas as partes. A liminar respondia a um pedido judicial dos Ritzenthaler, de acordo com o qual Edilson “de forma ilícita tenta de todas as formas usurpar” a Casa Silva após ser despejado, e que “o Brasil não é terra sem lei”. Além disso, a liminar recebeu tutela de urgência devido a uma suposta ameaça à segurança e ao bem-estar dos Ritzenthaler. 

“Tinha que ouvir as duas partes, né?” perguntou Rubeldimar. “Não só o lado dela.” A comunidade teve que juntar R$ 12.000,00 da noite para o dia de modo a contratar um advogado que a representasse na audiência. “E agora esse dinheiro de onde, rapaz? Que nós não temos dinheiro,” disse Edilson. “[Foi] pedindo aqui, pedindo ali.”

No dia designado, Helane acompanhou os advogados na audiência, enquanto o resto dos comunitários fez uma manifestação pacífica contra a GTN do lado de fora do fórum. Posteriormente, o pastor adventista local, assim como alguns anciões da IASD, contataram Marineuza e Edilson, visando discipliná-los eclesiasticamente “por jogar o nome da igreja na lama”. O casal conseguiu evitar a punição. Os Ritzenthaler, por outro lado, não seriam disciplinados, já que não são membros de igrejas locais.

Em março de 2025, o juiz que concedeu a liminar a favor dos Ritzenthaler foi suspenso e está atualmente sendo investigado pela corregedoria por libertar um homem colombiano da prisão preventiva pela posse de mais de uma tonelada de cocaína.

A última viagem missionária

Em resposta à liminar, Helane e Diego, cunhado de Marineuza, prepararam um documento com uma linha do tempo detalhada e evidências de todas as supostas irregularidades, e o enviaram para a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA) no dia 19 de julho de 2024. Enquanto isso, advogados da APACSA continuavam a pedir a suspensão da liminar e a entrada do Estado do Amazonas no processo. Ao fim de 2024, a SEMA encaminhou o caso à procuradoria geral do estado, que fez o pedido para entrar no processo.

Entretanto, o processo se arrastava, e pedidos para a suspensão da liminar foram negados. Beatriz também processou Edilson por difamação, num caso que ainda não foi concluído.

De fato, a situação parecia tão confortável para os Ritzenthaler que, em março de 2025, o casal levou 80 alunos e professores da Georgia-Cumberland Academy até Santo Antônio. Em uma visita mais recente a Village Church, Robert disse aos membros que, “somando a nossa equipe, havia umas cem pessoas”. “O que os ribeirinhos acharam disso? Vocês meio que tomaram conta de tudo, não?”, perguntou uma membra da Village Church. “Eles ficaram animados,” respondeu Robert.

Os Ritzenthaler apresentaram sua versão dos eventos durante um culto gravado na Village Church em 2025.

Os ribeirinhos nos disseram que ficaram assustados, porque nunca tinham visto tantos estrangeiros lá de uma só vez, e não foram consultados anteriormente. Além disso, pouco da viagem missionária foi planejado para beneficiar a comunidade: além de pintar as casas dos poucos comunitários que permitiram, a maior parte da missão foi gasta construindo muros externos para as igrejas de Novo Airão, além do mais importante: uma ponte entre a Casa Silva e a casa dos Ritzenthaler, ocupando ainda mais terras que não foram doadas à GTN.

Helane, indignada com a situação, reuniu os comunitários para interditar a construção da ponte. No entanto, a GTN havia encarregado alguns seguranças de impedir o acesso deles à propriedade. “Estou a serviço da Bia e não posso deixar vocês entrarem de jeito nenhum,” disse um deles a Helane, que gravou tudo em um vídeo que viralizou na região.

O vídeo gerou cada vez mais comoção pública, com várias reportagens cobrindo o assunto na rede de televisão local. Em maio de 2025, o presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) já havia suspendido a liminar contra a APACSA, o procurador geral já participava do processo, e a defensoria pública havia visitado a comunidade para examinar a situação.

No dia 30 de maio, a GTN apelou contra a decisão do TJAM, pedindo que a liminar contra a APACSA fosse reinstalada e afirmando que tinha as autorizações necessárias para as duas casas. Segundo a GTN o juiz só havia levado em consideração “falácias do Estado e de pessoas em rede social”. Segundo os autos do processo, a resposta do procurador-geral, tratando da “precariedade técnica” dos argumentos da GTN, afirmou que “a única falácia que há é a de que a Global Thinkers Now, agora recorrente, seja uma organização filantrópica e missionária em prol de defender as comunidades ribeirinhas de nosso Estado (…) Se existe, pois, alguma falácia neste litígio, é a de cidadãos norte-americanos serem populações tradicionais da Amazônia Ocidental”.

O procurador do estado também fez referência a documentos da SEMA que atestavam várias irregularidades nas atividades da GTN. Em junho, conforme reportado pelo G1, a SEMA multou a GTN em R$ 60.000,00 e interditou a ocupação do terreno, dando aos Ritzenthaler 30 dias para deixar a propriedade. “Não pusemos uma pá no solo até termos sido aprovados em todas as instâncias do governo,” Robert dissera em sua visita à Village Church em 2024.

Agora livres da liminar, a APACSA votou para revogar a transferência do endereço permanente da GTN à comunidade uma semana antes de chegarmos. No entanto, após passar o dia e a noite conversando com os ribeirinhos, descobrimos que os Ritzenthaler ainda estavam em sua casa, muito tempo após o prazo da SEMA. Era hora de cruzar a cerca do condomínio e contatar Robert e Beatriz.

Os meus olhos já divisam não tão distante

Até então, havia sido difícil entrar em contato com os Ritzenthaler. Beatriz foi a primeira parte com a qual entramos em contato. A princípio muito disposta a falar, alegando que eram “vítimas de uma narrativa totalmente falsa manipulada pela mídia”, ela bloqueou nosso número de celular no dia seguinte.

Embora ela seja a voz da GTN no Brasil — pois Robert não fala português muito bem — ela permaneceu em silêncio durante boa parte das notícias a respeito do assunto. A única exceção foi a reportagem da Uol, para a qual Beatriz reconheceu que as salas de aula prometidas não foram construídas, mas alegou que os ribeirinhos sabiam que sua casa seria construída primeiro. “Quando a gente fez o pedido, foi falado que antes iríamos construir a nossa casa, porque nós somos os professores, nós que iríamos dar aula,” ela disse ao Uol. Ela também afirmou que a crise era resultado de uma campanha difamatória feita por Edilson e sua família, acrescentando que Robert e ela haviam dado algumas aulas de música do lado de fora da casa até começarem os conflitos.

Nossa única outra interação com os Ritzenthaler foi indireta. Nossa conversa com Rosinete de Oliveira, cuja família é atualmente a única apoiadora da presença da GTN na comunidade, foi interrompida porque ela tinha um compromisso com a “celebridade”, como apelidou o filho dela. Ela correu para a casa dos Ritzenthaler, e na manhã seguinte estava dizendo aos outros ribeirinhos que não éramos adventistas de verdade, e sim manipuladores. Então quando atravessamos a cerca da Casa Silva rumo à habitação do casal, olhando para cima em busca de câmeras ao invés de pássaros, já estava claro que não éramos bem-vindos.

Mas quem são os Ritzenthaler?

Beatriz, nascida no Centro-Oeste brasileiro — a fronteira em que latifúndios encontram violentamente a floresta amazônica — tem uma forte conexão com a Village Church e seu marido. Durante uma conversa na Village Church, Robert Ritzenthaler afirmou: “Nós nos conhecemos aqui, e somos membros aqui há mais de 20 anos; este é o nosso lar. A missão na Amazônia nasceu aqui, com vocês.”

De fato o site da GTN lista o serviço online Adventist Giving, da Divisão Norte-Americana da IASD, como uma possível via de doação, redirecionando doadores à página de dízimos e ofertas da Village Church.

Robert se formou em artes e Beatriz estudou música na Universidade Andrews. Embora sua organização sem fins lucrativos GTN tenha sido estabelecida formalmente em 2015 nos EUA, uma reportagem sul-mato-grossense de 2013 menciona que Beatriz criou a organização em 2009, e que recentemente estivera tocando piano e arrecadando fundos para uma missão na Índia. Beatriz e Robert já eram casados na época, mas as coisas não iam tão bem: em 2010, Robert abriu um pedido de falência em relação às suas empresas Ripple Effect, Inc. e ILAG Faith, LLC, e devia centenas de milhares de dólares ao Bank of America.

Entretanto, o jogo parece ter virado desde a criação da GTN. Além de seus empregos, dados da ProPublica mostram um aumento quase constante — e às vezes súbito — na renda, nos gastos e nos ativos da ONG, que foram de aproximadamente US$ 10.000,00 em 2015 para mais de US$ 100.000,00 em 2023. O site da GTN lista alguns outros membros da organização: os brasileiros Andrea Oliveira, Alberto Coelho, Moisés dos Santos e Paulo Silas da Silva. O casal estadunidense Joshua e Courtney-Lynn Stahl trabalham na tesouraria, e o casal Bruce e Dorothy Hayward, que são diretores de campo para projetos asiáticos no ministério independente Adventist Frontier Missions, formam a equipe pastoral da organização. Tanto Bruce quanto Joshua são mencionados como parte do conselho da GTN.

Tão cansado estou da vida aqui deste lado

Atravessando a cerca do condomínio sob os olhos vigilantes das câmeras, entramos na varanda e tocamos a campainha. Alguns minutos depois, ouvimos a porta dos fundos, e Robert veio de trás da casa, dizendo que Beatriz estava “descansando” e não falaria conosco. Embora pudéssemos falar com ele em inglês, Robert não estava muito disposto a falar: “A revista de onde vocês vêm, eu vejo as reportagens de vocês, e não é algo com o qual eu queira me envolver,” disse ele. “Eu espero que esse problema nem vá pra revista de vocês. Mas se for, vocês vão contar uma história inspiradora?”

Visivelmente nervoso, Robert buscava terminar a conversa rapidamente. “Estamos aqui legalmente, fazendo o que fazemos, e isso na verdade é tudo que temos para dizer,” afirmou. Mas suas respostas não eram tão diretas quanto ao que eles de fato fazem em Santo Antônio. Ao perguntarmos por que a escola não foi construída conforme o plano original, ele respondeu: “Qual é sua definição de uma escola? É uma construção ou uma grade curricular?” Quando respondemos que estávamos nos referindo a como a escola foi definida na ata da assembleia que lhe doou o terreno, ele culpou os ribeirinhos.

Robert afirmou que eles tinham planos dali em diante, mas que eles foram paralisados devido ao conflito. “O plano era trazer os professores e gente com talento para cá. Mas se você tem gente tentando tirar o que você tem, por que você vai continuar a se expandir?”

De fato, “talentos” pareciam ser um tema recorrente em nossa conversa. “Estamos aqui para compartilhar nossos talentos,” explicou ele. Quando perguntamos se estes talentos eram mais relacionados ao ensino de música: “É nisso que temos formação,” respondeu, acrescentando que eles não eram qualificados para ensinar marcenaria ou inglês, por exemplo.

Beatriz dava aulas de piano para algumas crianças da comunidade, e Robert dava aulas de violão; mas quando seu relacionamento com os ribeirinhos deteriorou, os Ritzenthaler passaram a navegar rumo a outras comunidades para fazer o mesmo. Quando perguntamos se eles faziam isso todos os finais de semana, Robert ficou na defensiva. “Eu não vou dizer com que frequência nós vamos, porque quanto mais e mais fazemos coisas, mais e mais oposição nós temos, e é por isso que vocês estão aqui.”

Conversando com Robert, é muito fácil ter a impressão de que os Ritzenthaler são um casal de adventistas bem intencionados que decidiram se mudar para o interior e empregar seus talentos a serviço da comunidade local, não os presidentes de um ministério adventista com bens que somam US$ 100.000,00. “Já temos certa idade, início da aposentadoria, viemos para cá, compartilhamos nossos talentos com as pessoas. É divertido,” refletiu Robert, aparentemente alheio ao contraste entre suas afirmações alegres e a escala das promessas não cumpridas da GTN.

A linha borrada entre objetivos da GTN enquanto organização, desejos pessoais dos Ritzenthaler e crenças adventistas extremas fica ainda mais aparente em um dos vídeos da GTN para o YouTube. Chamando o que fizeram no Brasil de “vida no campo”, Robert mencionou uma das maiores inspirações do casal para seu trabalho na Amazônia. “Eu vi um documentariozinho legal que o Doug Batchelor fez sobre a casa que ele tem no campo,” disse Robert, visivelmente animado, enquanto na tela aparecia a imagem de um vídeo de nove anos atrás chamado “Vida no campo com o pastor Doug”. “Achei ele muito… levemente informativo,” disse ele, antes de compará-lo ao seu trabalho em Santo Antônio. O vídeo termina com Beatriz mostrando sua horta enquanto ela praticava princípios de vida no campo antes de se mudar para a selva.

Meus braços quase já não podem remar

“A gente vivia muito feliz aqui. Eram quase todos católicos,” disse Rosinete, a única católica restante em Santo Antônio. Rosinete foi adventista por 10 anos, mas voltou à fé católica. Sua família fundou a comunidade com a de Marineuza. “A gente vivia bem… Depois que passaram a ser adventistas pronto. Subiram no salto e ficaram falando que eu tinha que ir pra igreja de Deus,” disse ela.

Nos sentamos em frente à casa lilás de Rosinete, pintada recentemente na viagem missionária da GTN, e tomamos uma xícara de café enquanto a escutamos. As únicas apoiadoras ativas dos Ritzenthaler, Rosinete e sua nora adventista Valquíria Nunes da Silva nos disseram que Beatriz é uma mulher de Deus. No entanto, ambas mantiveram que o adventismo foi responsável por criar conflito na comunidade — após a conversão, muitos dos comunitários queriam proibir festas tradicionais e a circulação de bebidas alcoólicas na comunidade. O filho de Rosinete até quis desmanchar a pequena capela católica de madeira na vila, mas voltou atrás após ser atingido por um raio. Para Rosinete, que cuida sozinha da capela, o raio foi uma mensagem de Deus.

O casal de comunitários Marinês Miranda Pontes e Ailton da Silva enxergam o adventismo de outra forma. “Faz muito bem,” disse Ailton sobre sua conversão. “E fora que o gasto que a gente tem, né? Que a gente já não ganha tão bem, né? A gente gastava 300 pau de cigarro todo mês. […] Não me arrependo [de me converter] não.” 

No entanto, ambas as partes concordam que a comunidade adventista na região está dividida. “Tem uns [adventistas] em Novo Airão que dizem que a gente é culpada,” desabafou Marinês. “Mas as pessoas que tão de fora, elas não conhecem a nossa realidade para nós que mora aqui, né?”

“A gente tava pregando tipo amar o próximo e tal e ao mesmo tempo a gente tava vendo os conflitos, a briga ali e tal, né?”, compartilhou Ana Cláudia, que se afastou da IASD juntamente com sua família. Incomodada com a distância entre Marineuza e Edilson, que ainda a convidam para ir à igreja, e os Ritzenthaler — tudo isso enquanto pregavam harmonia — ela e sua família pararam de frequentar a igreja e não voltaram.

“Eu vou continuar,” nos disse Edilson em meio a lágrimas. Tendo deixado a liderança do grupo, ele ainda está arrecadando dinheiro com outros adventistas locais para terminar a igreja da comunidade. O orçamento escrito à mão mostrava que faltavam R$ 18.580,00 para terminar a tarefa. “Me dói muito que eu desde criança que eu eu sou envolvido com isso. Eu gosto, tá no meu sangue. E eu vou sempre trabalhar por isso. Eu sempre vou estar focado, embora um pecador que sou. Depois do que Deus fez por mim, é o mínimo que eu posso fazer.