Com a 62ª edição da Assembleia mundial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, enquanto a mídia adventista oficial prioriza a reputação, iniciativas independentes desafiam narrativas e a gestão da opinião
Por André Kanasiro e Felipe Carmo | Versão atualizada da coluna publicada em inglês na Spectrum Magazine.
Toda vez que uma Assembleia da Associação Geral (AG) está prestes a acontecer, os departamentos de comunicação da Divisão Sul-Americana (DSA) da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) enfatizam a dinâmica “democrática” do processo de tomada de decisões da denominação. Frequentemente, afirma-se que a estrutura organizacional prioriza as demandas das igrejas locais por meio de um modelo de representação de baixo para cima, dando a cada membro uma “voz de autoridade”. No entanto, quando se trata da América Latina, não está claro se os membros conhecem os critérios usados para escolher seus delegados, levantando questões importantes sobre qual “voz” está de fato sendo apresentada à IASD global.
No caso do Brasil, a “voz do povo adventista” deveria refletir seu perfil majoritário: mulheres, pessoas negras, trabalhadores de baixa renda e em ocupações não especializadas, especialmente nas regiões Norte e Nordeste1 — uma realidade compartilhada com a população evangélica em geral. Embora as mulheres aparentemente tenham menos oportunidades de participação nas atividades locais de suas igrejas, elas estão entre os maiores consumidores da mídia oficial adventista: pelo menos 80% do público da TV Novo Tempo são mulheres entre 35 e 60 anos, das classes média e baixa.2
Apesar de serem maioria entre os membros da IASD, a sub-representação feminina nos processos decisórios do adventismo não chega a surpreender, em virtude dos problemas estruturais vastamente reconhecidos na instituição. Por isso, além de questionar qual “voz” fala pela América Latina na AG, devemos perguntar por que os “ouvidos” dos adventistas latino-americanos são impedidos de acessar discussões relevantes para o desenvolvimento da denominação.
Há anos, a IASD na América Latina não faz esforços para, na medida do possível, transmitir e traduzir as Assembleias da AG em tempo real. Nas três últimas edições (2010, 2015 e 2022), a cobertura midiática limitou-se a resumos superficiais da TV Novo Tempo e a vídeos diários dos correspondentes da DSA. No Brasil, é fato conhecido que o membro adventista médio está desinformado sobre debates cruciais relacionados à IASD global — mesmo sendo diretamente afetado por seus desdobramentos.
Para este ano, no entanto, recentemente foi implementada uma iniciativa nova — um pouco mais robusta — para informar os membros através de um portal exclusivo dedicado à assembleia que promete oferecer notícias, podcasts e vídeos sobre o evento. Desta vez, o departamento de comunicação decidiu transmitir os conteúdos da assembleia para a cobertura do encontro, com conteúdos produzidos pela Agência Adventista Sul-Americana de Notícias (ASN), Adventist News Network (ANN), Revista Adventista (CPB), Revista Adventista em espanhol (ACES), e Rádio e TV Novo Tempo.
Mesmo assim, não parecem existir novidades em termos de linha editorial. Chamar esse mecanismo de “manipulação em massa” pode soar rude, mas não é difícil reconhecer no jornalismo adventista brasileiro aquilo que McCombs e Shaw já haviam observado de uma perspectiva teórica quando advogaram o conceito de agenda-setting nos meios de comunicação. Essa teoria propõe uma correlação direta entre os temas enfatizados pela mídia e sua percepção de relevância na formação da opinião pública. Em outras palavras, uma pauta jornalística pode influenciar o que e como as pessoas pensam sobre os acontecimentos.3
É exatamente assim que o departamento de comunicação da DSA opera, com um foco estratégico na “gestão de reputação”. Partindo do pressuposto de que o prestígio institucional deve ser preservado, seus esforços jornalísticos evitam controvérsias e críticas — internas ou externas — à dogmática ou à administração da igreja. Como qualquer consultoria de comunicação corporativa ávida por evitar crises, essa estratégia midiática seleciona temas que reforçam a imagem de uma instituição triunfante. Além do canal de notícias on-line e da Revista Adventista, há o “Revista Novo Tempo”, um programa com foco explícito em “boas notícias”, que evita a cobertura de temas como corrupção ou desastres. Segundo um ex-funcionário, essa abordagem segue uma política editorial rígida que marginaliza questões políticas.
Embora haja espaço para um jornalismo focado em reputação, seu domínio na estratégia de comunicação na DSA limita a missão adventista em sua amplitude. Mas isso não é novidade. O livro Independent Journalism in a Faith Community, de David Neff, defende a necessidade de imparcialidade, autocrítica e — principalmente — de um espaço jornalístico que “capacite os leigos”4 para além da promoção de uma imagem institucional. Embora esse ponto não seja central na obra, ele tem significado especial para a IASD latino-americana.
A história da América Latina — marcada por regimes autoritários, censura e ditaduras — moldou o jornalismo como ferramenta de resistência e, por vezes, de propaganda estatal. Assim, o jornalismo independente tornou-se crucial, já que a mídia tradicional costuma ser controlada por elites alinhadas à extrema direita, forçando jornalistas a tomar uma postura mais radical e ativista. À luz da ditadura civil-militar, esse contexto influenciou a maneira como as instituições religiosas gerenciam suas comunicações, muitas vezes silenciando vozes “subversivas”.
Mas esse controle midiático adventista não ficou sem oposição. A revista Zelota (fundada em 2021), iniciativa independente de leigos adventistas, carrega o lema do jornalista argentino Rodolfo Walsh até as últimas consequências: “Verdade não só se conta, a verdade se milita”. Em suas investigações, a Zelota revelou laços entre a IASD no Brasil e a ditadura militar. Esse contexto histórico ajudou a explicar conexões com o governo Bolsonaro e sua perseguição a pastores acusados de “marxistas”.
Além disso, a revista desvendou um adventismo de base — ignorado pela mídia oficial —, incluindo relatos de membros que se juntaram a movimentos revolucionários ou lutas por reforma agrária. Essas reportagens também abordam temas censurados, como direitos LGBTQIAP+ e feminismo. Em 2022, a Zelota envolveu leigos brasileiros nos debates da AG graças a colaborações externas. Apesar de operar remotamente, ela ofereceu uma cobertura mais abrangente que a mídia oficial da DSA. A revista demonstrou que a ausência de cobertura institucional não decorria de limitações técnicas, mas de uma estratégia deliberada de agenda-setting — simplificando discussões mais complexas e priorizando uma imagem atraente.
Diante da histórica supressão de vozes subversivas, o jornalismo adventista independente está fadado a uma recepção hostil na América Latina. Nesse contexto, essa iniciativa não serve apenas para democratizar opiniões: ela é o “ofício violento” de escrever para ampliar a participação leiga. No estado atual, é inevitável que cada reportagem soe como confronto. Como disse Walsh, mais uma vez: “A máquina de escrever, dependendo de como a maneja, pode ser um abanador ou uma pistola.”
Notas:
1.↑ Rodrigo Follis, Allan Novaes, Marcelo Dias, org. Sociologia e Adventismo: Desafios brasileiros para a missão (Engenheiro Coelho: Unaspress, 2015).
2.↑ Esse percentual foi mencionado em um estudo realizado com telespectadores de um programa específico da TV Novo Tempo chamado “Vida e Saúde”. No entanto, esses números foram confirmados por dois ex-funcionários como representativos do perfil geral da audiência da emissora adventista no Brasil, não se limitando àquele programa em particular. (Danilo André de Souza Rosa et al., “Television media and its Influence on the lifestyle of viewers of the Vida e Saúde program”, RECIIS, Vol. 19, e4338, 2025). Embora não pareça haver pesquisas específicas (ou disponíveis publicamente) que categorizem os consumidores da mídia adventista oficial, estudos de recepção no campo da comunicação sugerem indiretamente que eles podem pertencer à mesma faixa etária (Allan Novaes and Lizbeth Kanyat, “Consumo de Ficção Seriada por Jovens Adventistas: A Resignificação do Discurso Religioso na Prática do Cotidiano” in: Magali do Nascimento Cunha and Letícia Jovelina Storto, org. Comunicação, Linguagens e Religiões: Tendências e Perspectivas na Pesquisa (Londrina: Sytnagma Edições, 2020), p. 263-281).
3.↑ Maxwell McCombs e Donald Shaw, “The Agenda-Setting Function of Mass Media”, The Public Opinion Quarterly, Vol. 36, Issue 2, p. 176-187, 1972; “The Evolution of Agenda-Setting Research: Twenty-Five Years in the Marketplace of Ideas”, Journal of Communication, Vol. 43, Issue 2, p. 58-67, June 1993; Setting the Agenda: The Mass Media and public opinion (Cambridge: Polity Press, 2004). For studies related to religion, see “Agenda-setting, Religion and New Media: The Chabad Case Study”, Journal of Religion Media and Digital Culture, Vol. 4, no. 1, p. 126-145, 2015.
4.↑ David Neff, Independent Journalism in a Faith Community (Adventist Today, 2019). Kindle Version.