Morre, em 28 de julho de 2023, Wim Dierckxsens, economista e demógrafo holandês que aliou o trabalho acadêmico de análise crítica da economia política global à educação popular na América Latina


Wim Dierckxsens (Fonte: Global University)

Wim Dierckxsens nasceu em Hulst, Holanda, no ano de 1946 e, como nos disse certa vez, em uma família “pequeno-burguesa de classe média”. Em uma Europa em reconstrução no pós-guerra, Wim (como preferencialmente é conhecido em nosso continente, dada a quase impossibilidade de pronúncia de tantas consoantes em nossas línguas latinas) se formou em um ambiente de efervescência política e de debates francos, aproximando-se progressivamente de organizações e mobilizações mais radicalizadas à esquerda. Na metade da década de 1960, defendeu seu doutorado em economia na Universidade de Nimega (Holanda) e logo se mudou para a França, com uma bolsa de estudos para se especializar em demografia na Sorbonne (1968-1969).

Em meados dos anos 1970, Wim veio para a América Latina para trabalhar na criação e implementação de programas de pós-graduação na Universidade Centroamericana (UCA), na Universidade Nacional de Honduras (UNH) e na Universidade Nacional da Costa Rica (UNA). Nesse meio tempo, como demógrafo, coordenou pesquisas sobre imigração e população na América Central — especialmente na UCA, contando com o financiamento do Fundo das Nações Unidas para Atividades com População (UNFPA). Como fruto desse trabalho, Dierckxsens publicou a obra Capitalismo y población (1979) pela editora do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI).

A relação de Wim com o DEI começou a partir de um convite de Hugo Assmann, um dos fundadores desta instituição, para participar das atividades de formação popular e militante que eram desenvolvidas pelo Departamento. Logo se engajou com o trabalho de base local e passou a integrar o quadro de docentes e pesquisadores do DEI, além de compor a equipe editorial da Revista Pasos. Contudo, não apenas contribuiu para o desenvolvimento dos trabalhos na instituição, mas também foi transformado por ela.

Durante uma entrevista concedida para a Revista Zelota e ainda não publicada, Wim comentou em determinado momento que era profundamente grato ao DEI pela experiência como educador popular. Contou que por volta dos anos 1980, em uma oficina de formação, uma das pessoas participantes disse para ele que era impressionante e muito importante tudo aquilo que dizia, mas perguntou se ele poderia “falar em ‘língua cristã’”, no sentido de “linguagem comum” ou “popular”. A partir daí, o economista holandês disse ter percebido que precisava aprender e aprimorar um tipo de pedagogia e didática que mediasse o mundo acadêmico (europeizado) e a formação popular (ainda mais diante de grupos militantes de latino-americanos). Essa percepção, porém, não significava um “rebaixamento” ou uma “simplificação”, mas uma transformação de um conteúdo para outra forma de expressão.

Dessa maneira, seus trabalhos publicados se tornaram progressivamente mais didáticos e acessíveis — a ponto de preparar publicações de livros infantis de introdução a temas de economia política e crise econômica mundial, como Suzy y las maravillas del mundo-dinero (2000), Lucía y el mundo soñado (2005) e Marcelo ante un mundo de guerreros y banqueros (2013). De todo modo, todos eles sempre mantiveram uma base que se conectava naturalmente com as propostas fundamentais do Departamento Ecumênico de Investigações, e mesmo com os trabalhos de seus principais expoentes — como é o caso de Franz Hinkelammert, de Hugo Assmann, Germán Gutiérrez entre outros.

Desde seu primeiro trabalho publicado pela editora do DEI, sua discussão tinha um eixo central para a análise crítica da população e do desenvolvimento do capitalismo na região da América Central: a garantia das condições de produção e reprodução da vida dos trabalhadores (denominada, do ponto de vista da economia, como força de trabalho). A abordagem de Wim partia de algo relativamente óbvio e simples, mas muitas vezes esquecido ou mesmo negado por teorias liberais hegemonizadas: a reprodução da força de trabalho não é realizada individualmente, mas no seio familiar. São as relações domésticas e familiares, muitas vezes não percebidas como produtivas e menos ainda tendo algum “valor” (já que não podem ser trocadas por dinheiro), que tornam possíveis as condições de reprodução da vida dos trabalhadores. Assim, seguindo o pensamento de Marx, para Wim nem tudo o que é socialmente “valorizado” é realmente ou efetivamente “valor” — no sentido de produto necessário para a reprodução da vida.

Nesse sentido, na segunda obra em que analisa as relações de mercado e de trabalho na América Central, Mercado de trabajo y política económica en América Latina (1989), Wim apresentou alguns conceitos interessantes para compreendermos as dinâmicas de reprodução da força de trabalho a partir dos núcleos familiares em uma sociedade capitalista. Entre as muitas de suas contribuições, está a necessidade de se levar em conta que a expansão do capitalismo cria uma dinâmica de tendência à desintegração das relações sociais existentes. Isso significa que para manter as taxas de lucro e a reprodução ampliada de capital, as transformações produtivas constantemente desintegram relações sociais estabelecidas (familiares, comunitárias etc.), criando fluxos entre relações capitalistas e não capitalistas, ou melhor, relações socialmente valorizadas e contabilizadas com dinheiro e relações que perdem sua valorização social à medida que não poderiam ser “contabilizadas”.

Um exemplo simples seria uma senhora que cozinha para todos os seus familiares. O produto que ela realiza alimenta por dois dias a todas as pessoas que estão na casa, garantindo a reprodução da força de trabalho que empregam em troca de seus salários. O trabalho da senhora, entretanto, socialmente não tem valor e não será contabilizado nem como lucro, nem como parte do Produto Interno Bruto (PIB) de um país. Agora, se a mesma senhora trabalha em um restaurante ou vende a comida que produz, o mesmo produto “comida” que alimenta seus familiares passa a ter valor social e pode ser contabilizado, tanto como lucro, quanto como parte do PIB. O exemplo mostra, por sua vez, que reduzir o valor e a valorização à contabilidade em dinheiro esconde o processo de trabalho real e integrado entre atividades que são capitalistas (como troca de valores pelo mercado) e que não são, mas que estão vinculadas ao capitalismo (escondidas e negadas por ele, inclusive). A partir desse fluxo entre relações capitalistas e não capitalistas, Wim comenta que na economia política é preciso aprender a diferenciar o que são contas nacionais de contos nacionais. Os “contos nacionais” seriam as teorias econômicas que simplesmente passam por cima das relações de produção e reprodução da vida, invisibilizando as relações de produção reais que não são socialmente valorizadas. Segundo a tradição marxista, trata-se de analisar as relações sociais e de produção a partir da diferença entre trabalho produtivo e improdutivo do ponto de vista da forma e do conteúdo, especialmente desenvolvida por Wim em Los límites de un capitalismo sin ciudadania (1998). Graficamente, o autor apresenta a seguinte matriz:

Do ponto de vista da forma social (contabilização por meio do dinheiro), é “produtivo” o trabalho que gera lucro e improdutivo o trabalho que gera “valores de uso” (produtos cujo valor é determinado não pela troca por dinheiro, mas pela função de satisfazer necessidades). Já do ponto de vista do conteúdo material (como valor de uso), é produtivo o trabalho que gera produtos que satisfazem necessidades (ou que geram riqueza) e improdutivo o trabalho que redistribui a riqueza produzida (as trocas comerciais, o transporte, o armazenamento de produtos, os mais diversos tipos de seguros contra riscos etc.). Ambos são necessários para uma organização social, mas um deles é determinante para a garantia das condições de produção e reprodução da vida: o trabalho produtivo do ponto de vista do conteúdo material.

Dessa maneira, o critério para limitar e orientar as ações econômicas que têm valor social precisa ser orientado para a geração de riqueza por meio do trabalho produtivo que satisfaz necessidades. Sem isso, corremos o risco de cair nos contos nacionais, cujo limite último é sacrificar a vitalidade econômica em troca de um valor socialmente determinado que põe em risco as condições para a reprodução social e da vida das pessoas trabalhadoras (inclusive como força de trabalho). Para o autor:

“Os conceitos de trabalho produtivo e improdutivo têm uma importância real para toda alternativa que queremos esclarecer a partir dessa obra. Pode-se abordar sua definição a partir de dois eixos: o primeiro, parte da maximização do lucro privado apontado como eficiência econômica, bem refletido na atual economia formal […]. O segundo, parte da reprodução da sociedade como um todo e a parte substancial da economia concebida pelo pai da economia [Adam Smith]. O primeiro eixo nos permite analisar a lógica interna do neoliberalismo, enquanto o segundo nos faz entender melhor a necessidade da regulação econômica em nível mundial.”1

São inúmeras as contribuições de Wim com essa sua leitura a partir de Marx. Decorrem análises sobre a substituição e a rotação da força de trabalho, sobre a diferenciação social do trabalho e da valorização do trabalho, o como essas dinâmicas se articulam com a reprodução social, de classes e as crises econômicas, imigrações etc. Mas o fundamental é compreender que sua produção tem como critério a garantia material da vida, posta em risco e hoje sob uma situação crítica de imediata ameaça às suas condições de produção e reprodução pela globalização capitalista. Nesse sentido, Wim atuou como diretor do Fórum Mundial de Alternativas e como coordenador do Observatório Internacional da Crise, buscando sempre outros modos de integração econômica global, críticos ao neoliberalismo e conscientes dos limites atingidos pelo desenvolvimento econômico baseado no capital.

Assim, o pensamento de Wim se articulou na América Latina com movimentos sociais contestatórios; particularmente, assimilando discussões éticas e sobre a racionalidade reprodutiva (ou seja, que não visa a obtenção ótima do lucro, mas pela eficiência em garantir meios para a vida da comunidade), Wim propôs a racionalidade do Bem Comum em contraposição à racionalidade econômica que sacrifica o tempo de vida das pessoas e dos próprios meios de produção e de consumo em nome da acumulação e reprodução do capital. Nesse sentido, desenvolveu em toda a sua vida um trabalho comprometido e engajado, aliando a produção acadêmica de ponta com a educação e a formação popular.

Notas:

1. DIERCKXSENS, Wim. Los límites de un capitalismo sin ciudadanía: 1998, pp. 14-15.

Bibliografia:

DIERCKXSENS, Wim. Capitalismo y población: la reproducción de la fuerza de trabajo bajo el capital. DEI/EDUCA: San José, Costa Rica, 1979a.

_____; FERNANDEZ, Mario E [eds]. Economía y población: una reconceptualización crítica de la demografía. DEI/EDUCA: San José – Costa Rica, 1979b.

_____. Los límites de um capitalismo sin ciudadania: hacia uma mundialización sin neoliberalismo.  4ª ed. DEI: San José – Costa Rica, 1998.

_____. Lucía y el mundo soñado: un viaje por la historia hacia Utopia. DEI: San José – Costa Rica, 2005.

_____. Marcelo ante un mundo de guerreros y banqueros. DEI: San José – Costa Rica, 2013.

_____. Mercado de trabajo y política económica en América Latina. DEI: San José – Costa Rica, 1989.

_____. Suzy y las maravillas del mundo-dinero. DEI: San José – Costa Rica, 2000.