Resenha do livro “A luta que há nos deuses: da Teologia da Libertação à extrema direita evangélica” de André Castro
Frustra tenetur ille, qui státuit mori.
Sêneca, Herculles Oeteus, 923
Ouvimos falar de coisas terríveis: ruínas, incêndios, roubos, matanças, de pessoas submetidas a toda sorte de violência. É verdade, ouvimos muitas coisas, por todas elas nos lamentamos, muitas vezes choramos, dificilmente poderemos ser consolados; não contesto, não nego que ouvimos falar de todas as atrocidades que naquela cidade foram cometidas.
Agostinho, De excidio urbis, 2. 3.
Recentemente, durante o evento que “celebrou” a democracia em meio aos escombros do 8 de janeiro, ocorreu uma cena que diz muito do Brasil. O icônico relógio francês, cuidadosamente restaurado, marcou uma hora exata, quebrando o discurso da primeira-dama da República com seu som agudo e discreto. A cadeia de significados não passou despercebida. Com um gesto simples, Janja apontou para o relógio e exclamou: “Ele está funcionando!”. Os escombros agora restaurados tocam novamente, a reconstrução torna-se imperativa e a memória vira slogan.
Ora, mas o relógio destruído não dizia nada? As ruínas da frágil república não têm nada a dizer? A cena do relógio vindo ao chão e o prédio tomado não nos comunica nada, além da abjeção pelas ruínas? O destroço do presente francês para o Brasil do Futuro não comunica nada? Na verdade, inversamente, a imagem da restauração é que parece não significar nada em um país que, sob escombros, tenta sobreviver: catástrofe e ruínas. Que horas são?
As horas? São aquelas onde não somente produzimos escombros e nos distanciamos deles com abjeção, mas onde somos construídos nos escombros. O livro de André Castro nos faz perceber que nós, os esclarecidos libertadores, enxergamos as ruínas e, por isso, tentamos as reconstruir. O livro que analisaremos, A luta que há nos Deuses: da teologia da libertação à extrema direita evangélica, publicado pela Machado Editora, tenta dar conta de responder que horas são. A novidade é que tenta fazer isso não restaurando o relógio, mas vendo as horas por meio das ruínas e destroços.
Na teologia, o tempo se mede não pela sucessão de acontecimentos e personagens, mas pela qualidade e pela densidade do desenrolar. A pergunta que o livro tenta responder sobre que horas são é acompanhada pela pergunta sobre a qualidade do tempo presente. Kairós: tudo que hoje é ruína um dia fora construção.
A pergunta que surge então, ainda no primeiro contato com o título A luta que há nos deuses, é quais são esses deuses que guerreiam nessa luta? No entanto, antes de avançarmos e conhecermos os deuses guerreiros, um aviso já de antemão: há uma relação estritamente direta entre as imagens dos deuses e a significação destes na vida material. Ao avesso da crítica marxista clássica e, por isso, estranha aos ouvidos progressistas à esquerda, os rastros teológicos comunicam a materialidade.
A materialidade, nas ruínas dos deuses, é a janela pela qual Castro tenta interpretar o Brasil. Mas por que justo a janela dos deuses? O autor justifica: “é preciso lembrar que a religião é, em muitos casos, uma radiografia da realidade social e dos ânimos e expectativas da população” (p. 86). Tarefa difícil a radiografia, considerando que, se no Ocidente a luta dos deuses acompanha a História, no Brasil ela a forma e a condiciona. Glosa pobre, mas didática para os cabelos já embranquecidos: a história de toda a sociedade brasileira até nossos dias é a história da luta de deuses. Deus e deuses, Deuses e humanos, Deus e o diabo, Anjos e demônios, Crente e mundano, homens contra homens em nome de Deus; em uma palavra, luta. Estiveram sempre em constante oposição um com o outro, travando um conflito incessante, ora disfarçado, ora aberto, uma luta que cada vez terminou ou pela transformação revolucionária de toda a sociedade, ou pela destruição.
O subtítulo da obra contribui para uma compreensão esquemática do livro: da teologia da libertação à extrema direita evangélica. O uso da expressão “da […] à” sugere uma transição, criando a impressão de uma polaridade em que os dois extremos não se comunicam, como se fossem opostos irreconciliáveis. Contudo, Castro subverte essa lógica binária dentro da própria frase, mostrando que, de algum modo, esses dois polos estão interconectados — pelo menos através do deslocamento da experiência. Existe uma comunicação tensa entre eles, tanto na ordem temporal (como a morte das esquerdas, a precarização do trabalho e as figuras de Antônio Conselheiro, Lula e Bolsonaro) quanto na dimensão da qualidade da experiência, refletindo as expectativas e horizontes de sentido de cada um dos polos.
Sursum Corda! Voltamos aos deuses: a obra é dividida em três lutas. A primeira é travada na nascente República, a figura do anticristo contra a figura de Antônio Conselheiro e a “Jerusalém de Taipa”, luta contra o progresso forçado em nome do desenvolvimento e a laicização.
A segunda luta é a do Deus Libertador em favor dos pobres, que encontra no Brasil do Futuro a promessa para a emancipação. Nesta segunda, a Teologia da Libertação é a arena: a utopia do Reino torna-se a utopia e projeto político, a criação de “novos céus e nova Terra” vira cartilha social e o Deus que havia libertado seu povo passa de novo gritando libertação.
A última luta dos deuses é aquela na qual estamos imersos: o Progresso não veio, a libertação não pode ocorrer, e os empobrecidos tentam sobreviver no colapso da modernização à brasileira.
Castro percebe que há na dinâmica da libertação uma rachadura: ela é ofertada para sujeitos irreais. Ele aponta que no Brasil há libertações e respostas para um sujeito que já não as quer da forma que lhe são propostas.
O sujeito teológico mudou, e mudou porque as condições sócio-históricas mudaram. Com isso, percebe-se que há um abalo no andar de cima: guerreiam-se os deuses e, com a guerra, mudam-se os pecados e, consequentemente, as virtudes. A premissa do livro-ensaio de Castro é que já não é possível oferecer respostas desenvolvimentistas e catecismos liberacionistas das décadas anteriores, simplesmente porque eles já não dizem nada, exceto palavrório. Moisés grita Canaã para aqueles que não sabem o que estão fazendo no deserto.
Os impactos dessa mudança se manifestam em múltiplos níveis, deixando um rastro de desagregação que atinge tanto as relações interpessoais quanto as estruturas institucionais; estas terminam se tornando aquelas que atrasam o fim, gestoras da barbárie e só. A fragmentação do tecido social é acompanhada por um esvaziamento das instâncias de pertencimento coletivo, ampliando o sentimento de isolamento e insegurança. A Teologia da Libertação morreu não por seus manuais ou por problemas teológicos; morreu não pelo decreto de 1984 ou pela carismatização da experiência religiosa; morreu porque todas as teologias que não são da destruição não têm sentido e adesão, e não as têm porque não configuram mais o horizonte de expectativas do sujeito teológico. Morreu por não ser teologia concreta.1
Que atualidade tem uma teologia que se baseia no desenvolvimento, quando o desenvolvimento agora é a ruína? Que voz tem uma teologia que se baseia no trabalho, se a questão do trabalho já não existe fora dos sindicatos? Que atualidade e força profética ela mantém quando tenta ser ela mesma gestora da barbárie, sempre adiando e adiando o fim?
Antes de ir adiante, vamos parar no tatame específico do trabalho: o trabalho, enquanto categoria histórica, não apenas ordenava a produção material, mas também operava como eixo estruturante da sociabilidade. Isto é, as pessoas se constituíam sujeito no trabalho. Contudo, ao ser esvaziado de seu caráter integrador e reduzido à lógica da mera sobrevivência sob o regime do capital tardio, torna-se um veículo da reificação mais extrema.
O colapso desse princípio de mediação social, que sustentava todo o corpus theologicum desde Gutierrez, não resulta em liberdade, mas em uma regressão ao particularismo competitivo, onde a solidariedade é destituída de sua potência crítica e substituída por formas de sociabilidade espúrias, marcadas pelo cálculo instrumental e pela indiferença generalizada. Tal processo, longe de ser uma contingência fora da curva, é expressão imanente da lógica destrutiva que governa a totalidade social.
Assim, enquanto o capitalismo avança, substituindo o trabalho humano por automação, desvalorizando e uberizando as formas dos que ficam, e entrando em crises recorrentes pela incapacidade de continuar gerando valor, propostas como a Teologia da Libertação tornam-se obsoletas. Elas não conseguem propor alternativas que vão além do sistema-valor. Em resumo: a Teologia da Libertação não consegue libertar, limitando-se a ajustes e eventos dentro de uma estrutura que já se mostra insustentável.
A Teologia da Libertação não liberta mais porque sua libertação não é necessária e não serve no mundo que está prestes a acabar. Perdida sua função essencial de libertação, ela acaba se enclausurando em si mesma. E de manuais em manuais, de publicações em publicações, vai tentando dar razões de atualidade para si mesma. Ninguém a escuta. Moisés grita Canaã para quem tenta sobreviver: libertação vira dogma do alto da janela do Palácio Apostólico.
O livro de Castro [por influência assmanniana?] destaca a consideração do povo como o verdadeiro locus theologicus. Apenas a partir da experiência vivida pelo povo é que se inicia o percurso teológico, compreendido sempre como ato segundo. Que é o ato primeiro? A subjetividade apocalíptica: não é que estamos acostumados e nos acostumando à destruição do horizonte de expectativas, é que o horizonte de expectativas é a destruição. Somos filhos das ruínas, esse é o sujeito teológico; nós nos construímos sujeitos a partir delas, e não apesar delas.
Que fica na ausência da construção? Quando as pessoas olham para o horizonte da vida danificada, o que elas percebem e escutam? A revelação agora é o fim. Que teologia é a mais apropriada para o tempo dos fins? Ou, melhor dizendo, quais são os deuses dessa hora do relógio quebrado pela destruição?
O mundo que desmorona deixa escapar, na apocalíptica, sua gramática materialista-teológica: precisamos de messias! Um que respeite a ordem: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Um que antecipe o progresso: destruição e colapso.
A percepção de um futuro marcado por estagnação econômica e pela fragmentação das relações sociais tem moldado uma experiência de vida permeada por incertezas e limitações. O apocalipse torna-se a revelação e intervenção de Deus no mundo que acaba; Castro chama atenção ao fato de que “se na Teologia da Libertação a força de Deus, a força da ressurreição era ‘derramada’, era incorporada pelas massas populares que lutavam pela sua emancipação, na apocalíptica bolsonarista a revelação, a ação de Deus na história, acontece pela ação do governo comandado por Bolsonaro” (p. 127). Bolsonaro participa da redenção universal, e redenção universal aqui passa pela destruição.
O futuro é apocalíptico, o presente a aceleração do colapso. O profetismo aqui não tem lugar; o que precisamos é de um Messias. Essa esperança escatológica não apenas mostra a capacidade de conceber alternativas ao fim, mas também dá sentido à disseminação de cenários que vislumbram o colapso do mundo como desejável.
O mundo acaba: Maranata! Estamos na era das “expectativas decrescentes”.2 A destruição de tudo que é horizonte transforma a imaginação coletiva em um território dominado por apocalípticas messiânicas, onde as possibilidades de transformação estrutural parecem passar por categorias teoescatológicas.
Quando o Império Romano estava prestes a ruir, quando o som da destruição já era discernível e o espírito do tempo também indicava que, com o Império, o mundo conhecido viria abaixo, a tradição cristã viu em suas paredes uma figura aparecer: o Cristo Pantocrator. O Cristo Todo-Poderoso era evocado não somente como conforto, mas também como figura de esperança ativa além da sobrevivência. Sobreviver aqui é estar vigilante e combatente.
Quando tudo desmoronava, o Pantocrator dava às comunidades sentido de esperança e as levava a começar o projeto redentor de reconstrução das ruínas. Eis o último dos deuses. O Deus Todo-Poderoso, exatamente porque a potestade é sua maior atribuição, é o Deus da Ordem.
Se a ordem do mundo é a gestão da barbárie e o colapso de suas estruturas, a ordem do Deus que agora guerreia é outra. A desobediência anárquica à ordem é manifesta nos joelhos gastos de piedosas e avivadas3 senhoras que guerreiam com a Bíblia em punho, agora os “progressistas são defensores da ordem e os conservadores tornam-se revolucionários; aí está o espelho que inverte aquilo que se vivenciava no processo de modernização enquanto desconstrução real da vida social pós-colapso” (p. 215).
Castro, ao olhar que horas são, olha as ruínas sobretudo por duas escolas de pensamento consideradas mortas: a Teologia da Libertação e a Teoria Crítica Brasileira, na Santíssima Trindade Arantes-Menegat-Schwarz. Se essas correntes estão de fato mortas ou não, cabe ao leitor julgar a partir das teses apresentadas pelo autor. A ironia que se sente ao ler o livro, no entanto, é que muitas das ferramentas analíticas e conceitos empregados são heranças diretas da própria tradição considerada morta.
O livro frustra, e ao final, é quase intragável: “Que fazer?” indagam os afoitos que esperam receitas prontas e soluções programáticas. É evidente que as respostas para o colapso do Brasil não poderiam estar em um ensaio de 259 páginas; no entanto, ao menos a janela dos deuses pode ser bisbilhotada por aqui, e quem sabe entender o Brasil passe por isso. Teologicamente, o que se sabe é que exatamente quando não há nada é que se inicia algo.
Notas:
1.↑ Substancialmente, a crítica de Castro se difere das críticas de Clodovis Boff (2023) e de outros que acusam teologicamente e guerreiam a partir disso. Não há propriamente discussões teológicas, como, por exemplo, discussões sobre a hierarquia de valores ou sobre o presente antropocentrismo que termina em idolatria, ou mesmo sobre a necessidade teológica de princípios morais ecológicos. Isto se deve ao fato de que o texto não é uma crítica no campo da dogmática liberacionista em suas questões fundamentais; antes é uma crítica a partir do princípio de uma teologia concreta, por isso fora das discussões teológicas com um princípio teológico. A crítica é a crítica da concretude histórica, e não se ocupa com conceitos.
2.↑ Paulo Arantes, O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a Era da Emergência (São Paulo: Boitempo), 2014.
3.↑ Como ou melhor dizendo onde se manifesta essa “desobediência anárquica” à ordem vigente é o que tenta entender um outro trabalho também organizado por Castro que ainda está no prelo: João M. Duarte, André Castro, Jayder Roger orgs., Formação do Brasil avivado.