Entrevista com Juan Tudela, adventista chileno que atuou contra o regime ditatorial de Pinochet, resultando em sua prisão e tortura
A ditadura militar de Augusto Pinochet no Chile, iniciada com seu golpe no dia 11 de setembro de 1973, foi uma das ditaduras mais sangrentas na América Latina: os números oficiais falam em mais de 3 mil assassinados pelo regime, além de mais de 40 mil desaparecidos. Tamanha brutalidade serviu para garantir o sucesso de contrarreformas igualmente brutais, que empobrecem e endividam os chilenos até hoje.
Enquanto chilenos eram mortos e torturados pelo regime de Pinochet, a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), no Chile, mantinha relações amigáveis com o ditador, e, conforme apuração da Zelota, colheu muitos benefícios desta amizade. Mas nem todos os adventistas da época concordavam com a tirania.
Juan Tudela, de 58 anos, por exemplo, é um adventista do sétimo dia que, quando estudante universitário, fez parte da Frente Patriótica Manuel Rodriguez e atuou diretamente contra o regime pinochetista — sendo sequestrado e torturado por isso. Ele ofereceu uma entrevista à Zelota, e relatou com detalhes algumas situações vividas nesse contexto, além de comentar a respeito do relacionamento amistoso entre a IASD e o ditador chileno.
Revista Zelota — Você pode nos contar um pouco sobre sua infância e juventude? Onde você cresceu? Quantos anos você tinha na época do golpe contra Allende?
Juan Tudela — Quando o golpe ocorreu, eu tinha em torno de 10 anos, então é lógico que eu não entendia muita coisa. Mas já havia uma tensão em casa, pois meu pai tinha sido militar de carreira, então ele entendia o que estava acontecendo. Ele falava pra gente tomar cuidado com o que dizia, com quem a gente conversava. Lembro de uma vez que fomos de carro a Santiago, e enquanto cruzávamos a ponte sobre o Rio Mapocho eu vi várias manchas brancas boiando no rio; meus pais fecharam meus olhos na mesma hora, horrorizados. Só depois eu saberia que aquelas manchas eram de funcionários do hospital que foram mortos pelos militares, que tinham sido jogados no rio de jaleco e tudo.
Eu fui crescendo, estudei, e, no ano de 1981, saí do ensino médio e fui pra faculdade. Você tinha, no Chile, algumas coisas a fazer saindo do Ensino Médio e indo para a faculdade. Uma delas era ter uma boa nota e concorrer a uma bolsa que o governo dava para alunos que não tinham como pagar universidades privadas. Eu tirei uma nota boa, fui a segunda nota nacional em Biologia, no que hoje seria algo como o ENEM. Ganhei essa bolsa para estudar em uma universidade no Sul do Chile, caríssima, e o governo me pagava tudo. Então, eu não podia falar muito. Mas eu tinha minhas ideias por conta do meu pai, militar, que viu e me contou todas essas coisas, e eu tinha visto também. Imagine, até o oitavo ano e o fim do ensino médio eu vi muita coisa. Aí o problema foi que, quando eu fui para essa faculdade, ela era uma bolha dentro do país. Cheguei lá e era tudo muito verde; foi um contraste muito grande para mim, que nasci no deserto. Eram todos bem vestidos, não havia protestos, era uma cidade pequena no sul do Chile (Valdivia). As pessoas só estudavam, todos lindos, todos bonitos, biblioteca lindíssima. Vivi nessa bolha durante quatro anos até 1985, e eu não sabia muito o que estava acontecendo no Chile. Sepultavam notícias, o governo militar controlava tudo, televisão, rádio, jornal. Não se escutava nada. Mas meus pais se separaram nessa época, e eu decidi sair da bolha e ir para a capital, Santiago, onde viviam meus pais, e entrar numa universidade pública (Universidade de Chile).
Revista Zelota — Você era engajado politicamente?
Juan Tudela — De volta à capital, em 1985, foi como sair do céu e ir para o inferno. Lá soube que existia maconha, eu não conhecia antes. Em Valdivia era só whisky, não se conhecia a maconha, era outro mundo. Lá em Santiago pixavam, lá tinha protestos. Às vezes você estava em aula e de repente falavam: “Pro chão!”, e ia todo mundo pro chão, e eram tiros que passavam pela janela. Eram tempos de guerra, e você aprende a viver em tempos de guerra. Eram militares que entravam e pisoteavam você, você ficava no chão e eles caminhando em cima de você, colocando fuzil na sua nuca. Perguntavam o que estava fazendo, o que estudava, se era um vagabundo… Então, eu não tinha cabeça pra estudar. E aí você começa a escutar: “tem que fazer alguma coisa, tem que virar alguém, se não fizermos nada o país vai se desmanchar, tem que sair na rua, tem que queimar um ônibus, colocar uma bomba no supermercado, temos que fazer alguma coisa; senão, ninguém escuta!” Primeiro começa no movimento estudantil, onde te convidam pra um evento onde você atira pedra que não pára nunca, e depois vira um incêndio. Aí tem caras que ficam olhando você, e te dizem “você é o tipo de pessoa que nós precisamos, você é o cara, você poderia vir a uma reunião conosco para vermos o que podemos fazer pelo movimento”.
Revista Zelota — E como era a sua relação com eles?
Juan Tudela — Eu passei por todas essas etapas, até que fui para a Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR). Era um movimento terrorista, chamávamos na época de movimento de libertação. Sua linha política era à esquerda, e eles explicavam pra você o que estava acontecendo. Eu participei de muitas reuniões onde chegavam caras mascarados com M16, e os caras te explicavam que o país precisava, na verdade, de uma guerrilha, e que se você quisesse eles te ensinavam a portar armas, e o que você precisasse para ajudar. Eu entrei. Participei de toda a instrução que eles fazem. Muitos deles eram ex-militares; eu nunca vi o rosto deles, eles sempre andavam com o rosto coberto, eles te ensinam a montar e desmontar armas, a fazer armadilhas, colocar bombas. E vão te testando com coisas pequenas. Por exemplo, “precisamos que você pare o trânsito nessa esquina e nessa outra esquina. Junta estudantes, junta amigos, faz alguma coisa, mas precisamos dessas avenidas paradas durante dez minutos”. Pra quê? Não importa. Você pára o trânsito, sua função é essa. Aí você cria todo um planejamento, entra com o movimento estudantil, faz alguma coisa e para o trânsito durante dez minutos. Depois você fica sabendo que parou o trânsito durante 10 minutos pra que seis caras entrassem num banco, roubassem e saíssem. As pessoas estão sempre rotacionando, essa semana são oito, na próxima semana são outros oito, e você não conhece porque eles sempre iam mascarados. Você conhece os caras mas você não sabe quem são. Aí você vai entrando nesse negócio, causando dano a pessoas que não tem nada a ver… Eu coloquei bombas de fumaça dentro de supermercados, eu botei fogo em ônibus, eu joguei coquetéis molotov em veículos da polícia, fiz muita coisa. Mas também participei de um grupo de pessoas que estavam sendo preparadas para um evento especial, que ia ser a mudança total do Chile. Eram vários grupos diferentes, ninguém conhecia ninguém, ninguém sabia o que tínhamos que fazer, mas íamos sempre a algum lugar parecido com o lugar onde seria o acontecimento, com a função de fazer o que sempre fazíamos: atrapalhar o trânsito, fazer alguma coisa que produzisse um evento e impedisse a polícia de chegar ao local. Depois fiquei sabendo que esse evento para o qual nós estávamos nos preparando era um atentado muito importante. Eu quase participei da fase de organização, mas não fui um dos selecionados para participar do atentado. Havia muita desconfiança entre todo mundo, porque eu não sabia se o outro ia sair dali, e meia hora depois ia chegar em casa e ser todo mundo preso. Então, eles treinaram vários grupos, e na hora o que estava melhor preparado foi selecionado pra fazer funcionar. Meu grupo, por exemplo, participou do sequestro de um dos coronéis que era diretor de uma das faculdades de Santiago. Todo mundo estava focado em aprender a usar a M16 porque era o armamento a ser utilizado no evento. E eu achava que podia fazer algo com isso.
Revista Zelota — Por que você foi preso pelo regime? Pode nos contar o que fizeram com você?
Juan Tudela — Na primeira vez que eu fui preso, fui sequestrado e mantido dentro de uma van durante um dia inteiro. Tinha dois caras comigo, eles injetaram várias coisas na minha veia — provavelmente drogas — e passaram o dia me interrogando. Eles me perguntavam “O que o padre usa por baixo da batina?” e quando eu respondia “Não sei” eles começavam a me perguntar quem eram os líderes do movimento, se fulano e sicrano eram parte do movimento, etc. E eu não respondia, então começava tudo de novo. Aquilo se arrastou por um dia inteiro, até que eles me largaram num parque, quase inconsciente por causa das drogas, e chamaram uma ambulância para pegar o “drogado” que estava na rua. Quando eu recobrei a consciência fui à delegacia prestar queixa, denunciar o sequestro que eu tinha sofrido, mas eles me enrolaram durante vários dias — e pior, começaram a forjar informações para desacreditar meu depoimento. Eu tinha sido sequestrado logo após sair de uma prova de Química na faculdade, mas eles afirmaram que eu tinha faltado à aula no dia e nunca tinha feito a prova. Quando fui verificar, minha presença no dia e minha prova tinham desaparecido, como se nunca tivessem existido. Quando ficou claro que eu não ia conseguir nada e eu já tinha desistido, o delegado me chamou e perguntou: “E agora, já sabe o que o padre usa por baixo da batina?”
Na faculdade, nós tínhamos a possibilidade de falar com a pessoa que movia os alunos, e podíamos fazer coisas dentro da faculdade. A gente botava fogo num ônibus da polícia na frente da universidade e aí todos os alunos tinham que sair. A gente fazia coisas que pareciam que eram boas mas não eram. Quando entrou a polícia, não era pra eu estar lá, porque falaram que durante seis meses eu tinha que ficar longe desses movimentos; e falaram pra todos saírem da universidade, mas eu não saí, e aí me pegaram na biblioteca com mais umas 15 pessoas. Me pegaram em Santiago, me levaram num desses veículos fechados de transporte de tropas, me colocaram no piso, me levaram até a delegacia dos Carabineros, e durante a noite (2 ou 3 da manhã) me levaram pra outra, e depois para um ônibus que tinha as janelas fechadas indo pra algum lugar, e quando descemos, a gente estava no deserto. Estávamos em Santiago, e o deserto fica mais ou menos a um dia e meio de viagem. Chegamos em um lugar que tinha uma piscina enorme. Nos colocaram dentro da piscina (que estava vazia) e nos fizeram ficar lá durante uma noite e um dia, de joelhos, numa temperatura abaixo de zero durante a noite e acima de 30 graus durante o dia. Não podíamos ir no banheiro; então, nos cagávamos e nos mijávamos ali mesmo. Durante à noite, nos jogavam água de mangueira. Passavam algumas pessoas identificando alguns de nós, e aí levavam esses pra matar. A gente chegou lá e já tinha um monte de gente, mas quando saímos tinha sobrado quase só a gente que foi pego na faculdade. Estávamos vestidos, mas molhados, cagados, mijados… Com muita fome, porque não tínhamos comido desde 6, 8 horas antes. Só nos davam água. Colocavam música, marchas militares, e ficavam tocando durante a noite. Se você dormia, chutavam você. Estávamos todos enfileirados de joelhos, tão perto que se eu mexesse os cotovelos eu acertava quem estava dos lados. Se te escutavam falando, jogavam água. Então ninguém falava, porque fazia muito frio; a temperatura caía pra -5, -4 graus. E você não podia dormir. Acho que foi o pior momento que eu passei; o divisor de águas da minha vida. Só nesse período fui ameaçado de morte umas duas ou três vezes, com fuzil e com pistola. Umas duas ou três vezes o oficial que estava andando disparou ao meu lado pro céu. Ele ficava apontando pra minha cabeça, “vou te matar, desgraçado”, “vou te matar, desgraçado”, “vou matar sua mãe, seu pai, seu filho”, “fecha o olho, desgraçado! Fecha o olho que eu vou te matar agora”. Eu já estava cansado, com fome, eu fechava os olhos nesse momento e tudo que eu queria era morrer. Aí quando você fechava os olhos o cara disparava pro céu, e você se mijava…
Revista Zelota — E como você lidou com essa situação posteriormente?
Juan Tudela — Foi um divisor de águas pra mim. Eu não precisava ter ido pra Santiago, podia ter seguido minha carreira, continuado na bolha em que eu vivia lá. Mas eu quis conhecer. Isso me ajudou muito a crescer, mas poderia ter sido a última vez. Fiquei com isso durante muitos anos, e lembrei agora, lembrei te contando. Durante muitos anos eu sonhei com isso todas as noites. Eu sonhava, escutava o cara falar, sentia até o cheiro da pólvora. Isso cria problemas na cabeça. Meu pai foi militar de carreira, ele entrou pro exército com 16 anos. Ele fez a escola de suboficiais, e saiu como suboficial do exército. E ele sempre viveu nos ensinando como se comportar em tempos de guerra: “se tiver que fugir, vão te seguir por linha de trem, por linha de poste, não siga por esses caminhos, não siga por onde passam caminhões, vá por lugares escuros.” Então essa coisa de criança vai ficando e ajuda muito, me ajudou muito nesse momento. Os militares iam pra vilas, fechavam as ruas durante a noite, colocavam tanques e caminhões em todas as esquinas, e começavam a tirar todas as coisas para fora, de casa por casa. A família tinha que ficar na porta da casa do lado de fora; e os soldados começavam a quebrar tudo, procuravam armas, livros, discos. E você olhava de longe, quando encontravam alguma coisa pegavam o pai da família, a mãe, colocavam as mãos deles na nuca e levavam pra um caminhão. Eu me acostumei a ver essas coisas desde criança. Então eu sabia que a coisa era organizada, programada… Mas no momento eu não pensei nisso, e sim que tinha que fazer algo, e aí me meti nessas coisas. Sinceramente, meu maior arrependimento da vida é ter passado por essas coisas. Eu entendi que não ia levar em nada, nem tinha como. Chegou um momento em que eu fui chamado pro serviço militar, e o serviço militar é obrigatório. Quando você tem 18 anos, você vai fazer o serviço militar, e aí você vê o outro lado também: te tratam mal porque sabem toda a sua vida, e algumas coisas já sabiam de mim. E mesmo assim tentam te levar pro lado deles. Ao final, eu conheci os dois lados: ser um dos que lutava contra e ser um dos que tinha que receber ordens para entrar na casa de alguém, tirar as coisas pra fora etc. Aí eu entendi que ia ser a mesma coisa de qualquer lado que eu estivesse. O importante é ter claro quem é você, quem é sua família, o que pensam, e respeitar. Uma coisa que aprendi com tudo o que vivi foi respeitar. Meu país é um país racista, bem racista. Meu país é um país opressor, ainda que a maioria não saiba. Somos totalmente militarizados, desde criança nos metem essas coisas na cabeça: somos melhor que o Peru, somos melhor que a Bolívia, sempre estamos em guerra, sempre temos que estar preparados para a guerra. Nossa mentalidade é militarizada. E eu vejo isso. As pessoas que participam hoje em dia de movimentos políticos, mesmo sendo movimentos políticos, têm sua organização militarizada. Porque eles fazem como aprenderam. Eu conheci a Bolívia, conheci o Peru, conheço o Brasil, mas sinto que vocês não viveram o que nós vivemos — nem chegaram perto. Se você não gostava de alguém era só falar que o cara era comunista, e no dia seguinte ele estava morto. Se uma família estava incomodando era só ligar e falar “essa família é comunista, estão escutando música de revolta”, e no outro dia não tinha ninguém da família, sumiam todos; nem o cachorro deixavam! Era um negócio muito organizado. Pinochet nem educação boa tinha, e nem era pra ele ter sido o líder do golpe de Estado; quem organizou todo o golpe de Estado e fez tudo foi a Marinha, mas como dentro da nossa organização militar o Exército tem um maior grau que os outros, foi ele que ficou. E Pinochet tinha a cabeça frouxa. Pode ter tido coisas boas também, mas ao custo do sangue de muita gente, mais de 40 mil pessoas. É diferente aplicar o modelo econômico que ele aplicou em uma democracia e aplicar do jeito que ele aplicou. Ele aplicou assim: você é contra? Então morreu, não tem mais ninguém contra.
Revista Zelota — A igreja adventista te deu algum suporte ou proteção física e emocional durante esse período?
Juan Tudela — Uma das coisa que mais me dói quando eu me lembro é ter visto dentro da igreja adventista pastores apontando pessoas que não pensavam igual aos outros. Os pastores denunciavam, e militares entravam nas reuniões. Me lembro que estava numa reunião em Calama, em Antofagasta, eu era pequeno. Mas lembro que os militares entraram num culto de sábado, entraram pela porta principal, ocuparam as laterais. O oficial foi caminhando pela passagem do meio até o pastor que estava pregando naquele momento, e eles conversaram. O pastor ficou olhando pra congregação e falou “ele” e “ele”; os soldados pegaram as pessoas que o pastor apontou e levaram pra fora. Eu não me lembro do resto, não sei se não quero lembrar… Não sei se levaram, mataram eles. E eu vi isso acontecendo várias vezes. Se contava uma história que as pessoas acreditavam: que Pinochet deixava viver as pessoas que explicavam para ele as 2.300 tardes e manhãs. Obviamente isso era uma lenda urbana, de que ele tinha um apego especial por profecias. Então, a gente estudava as 2.300 tardes e manhãs, porque se a gente fosse preso tinha que explicar pro Pinochet, e aí ele deixava a gente viver. Os pastores falavam muito sobre isso. E eu vi muitos pastores sendo cúmplices desse tipo de atitude.
Revista Zelota — Eles elogiavam o regime nos púlpitos?
Juan Tudela — Não, mas existia o assunto de que “para que a igreja funcione, é preciso seguir as regras”. Isso era notório nas escolas e nas igrejas. Quando eu fui sequestrado e voltei, quem me ajudou não foi a igreja adventista. A IASD se afastou de mim; ao invés de me falar “você é filho de adventista, venha cá, vou te apresentar um psicólogo, vou te levar pra ser atendido de alguma forma”, eles me julgaram e entenderam que eu tinha sido preso por fazer coisa errada. E se eu estava fazendo coisa errada, não era bom me ter na igreja. Tanto que a primeira vez que eu fui na igreja depois do sequestro, o pastor se aproximou do meu pai e falou “Sr. Pablo, seria bom que seu filho ficasse em casa. Não é bom que ele esteja aqui. Se precisar de alguma coisa da igreja, nós te levamos.” O comportamento da igreja… Acho que existia uma norma de não enfrentar a autoridade para continuar funcionando. E qualquer coisa que incomodava era melhor afastá-la para seguir funcionando. Existia a regra de que o importante era funcionar. Então, quando eu precisei de ajuda, quem me ajudou foi a Igreja Católica. A igreja católica conseguia visto pra ir pra França, Inglaterra, Austrália, Suécia… E eles conseguiam o dinheiro da passagem, te colocavam no avião, e te recepcionavam do outro lado. Eles mesmos faziam toda a documentação pra que a gente entrasse como refugiado. Eles faziam um monte de entrevistas contigo; você tinha que contar o que tinha acontecido, como tinha acontecido, e faziam uma ficha pra apresentar lá do outro lado quando você chegava.
Revista Zelota — E você era adventista desde pequeno? Como você lidou espiritualmente com sua prisão e tortura pelo regime ao longo dos anos?
Juan Tudela — Minha mãe sempre foi adventista. Já eu, fugi da IASD toda a minha vida. Até que chegou aquele momento que foi um divisor de águas na minha vida, e eu tive um encontro com Deus. Eu disse a Deus: eu me entrego a você e você toma conta da minha vida, porque eu tô aqui mijado, cagado, e não sei o que eu faço, tô morto de medo. E aí eu segui em frente. Trabalhei um pouco, porque não tinha condições de voltar pra faculdade — todo mundo tinha medo de ficar perto de mim. Durante um ano eu fui perseguido; tanto que uma vez eu estava em uma cabine telefônica, ligando pra um tio no norte do país pra eu poder ir pra casa dele por um tempo, e aí se aproximou um senhor com um pacotinho, colocou o pacotinho na minha frente e falou “estamos de olho em você”. Deixou o pacote e foi embora. Eu peguei o pacote, tremendo de medo, pensando que devia ser algum tipo de veneno, e quando abri eram os meus documentos — os que eu tinha comigo quando fui preso e levado pro deserto. E aí você fica com isso na cabeça. Você pega um ônibus e pensa “estão me seguindo”. Vai ver a namorada e pensa “estão me seguindo”. Não tem cabeça pra estudar. Aí eu saí da faculdade, só faltava genética pra eu terminar, e depois que eu saí da faculdade me convidaram pra cantar em um grupo que se juntava numa escola adventista. E gostei de cantar. Aí me convidaram pra um coral e fui cantar no coral. Como eu não ia pra igreja, ia só pro coral, fiquei dois anos no coral. Depois fiz parte de um quarteto e viajei por toda a América do Sul, pros Estados Unidos, e quando viemos pro Brasil o quarteto inteiro ficou por aqui. Depois disso fui duas vezes pro Chile. Eu olhava as paredes de Santiago e ainda estavam as marcas dos tiros do 11 de setembro. E eu perguntava pro meu sobrinho se ele sabia alguma coisa disso e ninguém sabe nada. O governo tentou fazer uma rememoração coletiva do que aconteceu, mas a maioria se esqueceu. Hoje em dia Pinochet foi só um cara que morreu, o golpe de Estado e a ditadura passaram… Eu chorei quando fui no Museu da Consciência, porque ele realmente me tocou. Comprovou muita coisa que me falavam enquanto eu caminhava pela rua e eu não sabia: “não fica perto daqui porque torturam presos políticos aí dentro”. São prédios que estão lá. E depois que fizeram esse museu realmente se comprovou que esses lugares eram lugares de morte. A história de uma ditadura não é uma história de boas lembranças, mas uma história de aprendizado. Você aprende a entender as pessoas que pensam diferente; foi o que eu aprendi. Até em coisas simples; uma pessoa que é gay tem sua forma de pensar, suas crenças, e eu sinceramente as respeito. Assim, vai chegar um cara que é de direita, e eu vou respeitar igual, porque ele ainda não entendeu como são as coisas. Ou um cara de esquerda que vem falar pra mim que a esquerda é o melhor do mundo, eu vou falar pra ele: “que bom que você pensa assim.” Mas eu nunca posso induzir ou obrigar as pessoas a pensar igual a mim. Podemos chegar num acordo entre esquerda, direita, e caminhar todos juntos, mas eu não quero falar “vocês da direita não podem estar comigo porque vocês pensam diferente”. É isso que a gente aprende com esse tipo de coisa. Isso também vale pra religião! Um é católico, outro é batista… A cabeça é sua! Você aceita o que você quer, e eu vou respeitar. Não importa que você não guarde os mandamentos, não guarde o sábado… E eu acho que Deus pensa assim. Se a pessoa não guarda o sábado, Deus morreu por ele igual. E é isso que meu pai falava antes de morrer: o mesmo cara que te torturava, o mesmo cara que matava tanta gente lá no Chile, Deus também deu a vida por eles. Você vai fazer o quê? Deus vai dar castigo ou recompensa pra eles pelo que eles fizeram. Se você não aprendeu isso, ou você não viveu, ou… Eu tenho um primo, por exemplo, filho de militares, que defende o Pinochet até agora. É um problema dele, ele provavelmente não viveu o que eu vivi. Ou ele nunca quis sair da bolha, e que bom pra ele. Ele não tem os traumas que eu tenho! Ele pode até achar que é mentira o que as pessoas contam que aconteceu. Por exemplo, o Rodrigo Rojas [fotógrafo, comunista e ativista] morreu a quadras da minha casa. Eu morei perto de onde foi o atentado. Os caras pegaram, tacaram fogo nele e na menina que estava com ele. A menina hoje mora fora do Chile, já é uma senhora, e passou na vida por mais de 60 operações pra recuperar a pele, e mesmo assim continua toda queimada. Isso serve pra quê? Não serve pra mostrar que está certo. Eles tinham uma forma de pensar, os militares tinham outra, e obrigaram eles a pensar como queriam tacando fogo neles. Loucura total. Doentio.
Revista Zelota — E com todo esse aprendizado, você vê algum paralelo entre o Chile e o Brasil atual?
Juan Tudela — Quando Bolsonaro assumiu o governo, ele repetiu as palavras do governo militar do Chile. Eu falei “nossa, esse cara está indo por um caminho estranho”. E assim, eu não sou nem contra nem a favor dele; nem posso, porque nem voto aqui. Deveria, porque pago imposto como brasileiro. Mas mesmo que ele fosse a única alternativa pro povo brasileiro… Nem assim justifica [risos]. Eu não conhecia ele. Só quando fez a primeira fala dele na TV que me veio à mente um monte de coisa estranha. Foi muito estranho, porque eu via ele, mas estava escutando falarem os milicos. Até a forma dele falar. Meu pai sempre falava: “militar nunca foi ensinado pra falar. Ele dá ordens.” Então, fala as palavras cortadas… E ele [Bolsonaro] tem essas coisas. Pode ser que tenha alguma coisa boa no meio do mal, e pode ser que tenha tido alguma coisa boa no Pinochet… Mas era outra situação. Nenhuma democracia em sã consciência faria o que Pinochet fez. Deveria ser algo estudado por esses caras que estudam comportamento humano pra ver o que acontece em laboratório, mas não na vida real. Fiquei com medo quando escutei ele falar, e pensei “será que ele seria capaz de fazer isso?” Mas acho que não. O povo brasileiro é um povo bom demais. Eu sempre imagino o militar brasileiro como é um brasileiro, e o militar chileno como é um militar chileno. São muito diferentes. Cabeça quadrada. O militar brasileiro não tem cabeça quadrada. E você vê, um monte de ministros militares que colocaram… Tentaram e tentaram mas não conseguiram. Eu pego um general do Chile e coloco aqui na saúde, ele deixa a saúde direitinho… Mas o custo é grande.
Revista Zelota — Olhando para a América Latina nos dias atuais, você enxerga semelhanças com o Chile de Pinochet?
Juan Tudela — Pra você ver a diferença. Eu falo com a minha família lá no Chile, e eles estão em quarentena. A quarentena é setorizada. É um país menor, mas tudo bem, é setorizada. E Santiago é uma cidade grande, mas está setorizada. E está setorizada com os militares e a polícia. Se você quer ir de um ponto a outro de Santiago, a lei diz que você só pode ficar 3 horas na rua. Então, você tem que sair, você encontra um posto militar que vai pedir pra você o passe de saída. Aí ele anota o horário que você passou, e se você demorar mais de 3 horas, vai preso. Então, você vai até o centro e vai ter outro posto que vai pedir sua credencial e te falar “faltam duas horas só, melhor se apressar”. Aí você vai correndo, vai ter que voltar pelo mesmo posto, e ainda vai tomar bronca na volta. Então, tem muita gente sendo presa lá porque não cumpre com a quarentena, mas tem muita gente respeitando. Minha sogra é terceira idade, então só tem 2 horas pra sair. Nessas 2 horas ela tem que ir no mercado, fazer tudo que tem que fazer. E não pode ser em qualquer horário! Terceira idade tem das 6 às 9 horas da manhã pra fazer suas coisas; e depois disso não pode. É muito diferente. Agora tenta fazer isso aqui; não tem como. A diferença é a cabeça do cara que tá na frente e a cabeça do cara que tá obedecendo. Porque todo mundo passou pela escola militar obrigatória aos 18 anos, todo mundo sabe o que significa estar num comando militar. Meu pai falava que aqui é um circo, porque todo mundo faz o que quer. Isso porque são mentalidades diferentes. E quem viveu na ditadura militar ainda vive com ela na cabeça. A conduta segue. O centro de Santiago fica deserto às 22 horas, 23 horas. Mesmo antes da pandemia, eu queria ir ao cinema e não tinha cinema aberto. As pessoas não saem de noite, porque na época da ditadura tinha toque de recolher, e se você passasse das 22 horas te matavam.
Revista Zelota — E os militares e os carabineros não mudaram muito também, né? Nessas manifestações de 2019-2020 sequestraram manifestantes, abusaram etc.
Juan Tudela — Pois é. Mas o cara que está agora estava na ditadura militar? Não. Os generais que estão agora eram os últimos que estavam no final da ditadura militar. Mas o pensamento se transmitiu e se manteve. Nas escolas, os professores ainda não conseguem falar bem da ditadura, porque tem gente que não gosta, que fala que está errado… Em 2009 se aprovou que seja parte da educação chilena falar sobre o que significa viver numa ditadura. Mas ninguém quer falar! Então, produz problemas na cabeça de todo mundo. As pessoas não sabem o que aconteceu. Isso é bom e é ruim… Aqui no centro vira e mexe acontecem atritos, manifestações que dão em confronto. Lá eu sabia como escapar dessas coisas. Aqui as pessoas não sabem!
Revista Zelota — O que você pode nos dizer da situação atual do Chile?
Juan Tudela — Tem muita coisa que ficou da ditadura chilena, torturas, que ninguém quer falar. Por exemplo, o submarino! Foi uma forma de matar pessoas, e tiraram a palavra do léxico pra esquecer. Quando cheguei na Universidade de Chile éramos 30 alunos na turma. E 15 colegas meus morreram, pelo menos 2 pertenciam à minha turma. Eu participei da primeira ocupação da Central da Universidade de Chile. Foi a primeira vez que um movimento estudantil ocupava a central administrativa da universidade, que fica em pleno centro da capital. Eu participei dela, e enquanto ocupávamos o prédio, dentro dele estava sendo feita uma condecoração para os efetivos da DPI, a polícia de investigação do Chile que é como a polícia civil daqui. Não sabíamos disso porque era secreto, para evitar algum atentado contra eles. Então, a gente sabia de toda a agenda, mas não sabia disso. Então quando nós entramos, já na porta havia 4 seguranças armados, que o movimento logo desarmou. Mas a turma completa lá dentro era toda de policiais. Uma das ideias era usá-los como escudo, pra entrar na polícia e… Mas os dirigentes falaram que isso não era boa ideia não. Conversando com o pessoal da FPMR que estava em contato conosco, eles eram militares, ex-militares, e disseram “tirem as calças e o paletó deles, deixem só de cueca, e mandem para fora”. Os caras saíram todos de cueca, era pra sair em todos os jornais de Santiago, né? Não saiu nada. Toda a equipe da polícia saindo de cueca e não saiu nada nos jornais. Aí todas as pessoas que teriam problemas de algum tipo (porque a polícia ia entrar com tudo pra evitar que isso saísse no ar), porque faziam parte do braço armado etc. (eu incluso), tivemos que sair por uma porta escondidos, deixando só os alunos que participaram lá. Em duas horas a polícia entrou e levou todo mundo preso. Eu podia falar “eu atuei pra que o povo fosse liberto do governo”, mas não eram coisas que serviam pra isso. Eram coisas que faziam você se sentir bem e se sentir menos preso em toda aquela situação. Então, eu era contra o governante e fiz essas coisas. Alguns da FPMR que participaram do atentado contra o Pinochet estiveram presos aqui no Brasil. Eles foram identificados por causa de uma digital que deixaram numa Coca-Cola que tomaram em um lugar enquanto estavam esperando antes de se distribuírem para atacar o Pinochet. A digital delatou um deles, pegaram ele, e foram pegando um por um. Os que não foram pegos fugiram. Alguns fugiram pro Brasil, foram presos aqui, e foram extraditados recentemente de volta para o Chile.