A leitura da Bíblia proveniente dos setores populares oferece uma perspectiva inédita para interpretação e práxis do texto bíblico em resposta à realidade experimentada
Delegados das comunidades eclesiais de bases se reúnem em 1986 (Bernard Bisson; Getty Images).
Por Elsa Tamez | Uma das biblistas mais importantes de nosso tempo. É teóloga metodista pelo Seminário Bíblico Latino-americano e pela Universidade Nacional da Costa Rica, onde se especializou em Literatura e Linguística. Doutora em Teologia pela Universidade de Lausanne, foi reitora da Universidade Bíblica Latino-americana e é uma das principais expoentes do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI). Premiada por sua produção teórica no âmbito da hermenêutica, seu trabalho e militância são um marco na teologia da libertação, com sua crítica e perspectiva feminista, além das contribuições para a leitura popular da Bíblia. Artigo traduzido e adaptado do original em espanhol1 por Daniel José Burato para a revista Zelota.
A leitura da Bíblia na América Latina e no Caribe é uma das novidades mais importantes no mundo cristão deste continente. A novidade é marcada pelo interesse que se tem despertado em todos os setores, especialmente nos setores populares. Porém esse interesse não obedece a uma curiosidade em conhecer o seu conteúdo, e sim a uma busca de sentidos libertadores que iluminem o caminhar daqueles que estão descontentes com a realidade vivida (econômica, política, social, cultural, eclesial ou religiosa), e sonham com uma forma diferente de ser humanos e de viver como humanos no aqui e agora.
A leitura da Bíblia na América Latina e no Caribe tem uma boa trajetória. Fora do continente se conhece somente a leitura política da Bíblia que caracterizou a época dos anos sessenta ao oitenta; porém a realidade é outra. Através de mais de trinta anos de caminhada, podem-se observar no movimento bíblico, nas redes bíblicas, nos congressos e nas diversas publicações, distintos momentos exegéticos e até saltos hermenêuticos. O aprofundamento do estudo e da vivência espiritual bíblica tem levado a perceber na Bíblia uma fonte em cujas águas se reflete a vida, sempre imperfeita, dos povos; assim como os desafios de libertação, patriarcalismo e sabedoria profética que, de maneira complexa, nos apresentam tanto o texto como o mundo atual dos seus leitores. Aqui me proponho a sublinhar os traços mais importantes e comuns que caracterizam nossa maneira de ler a Bíblia. Farei a apresentação em duas seções: a primeira versará sobre os sujeitos e o ponto de partida; a segunda seção tem três pontos, que refletem o momento do caminhar bíblico; o redescobrimento da Bíblia como empoderamento dos pobres em sua prática política de libertação; o redescobrimento da Bíblia como um livro patriarcal e excludente e, terceiro, o descobrimento da Bíblia como um livro no qual se reflete a complexidade da vida nos textos, que tem poder para libertar e para oprimir.
Os sujeitos da leitura e seu pano de fundo: o ponto de partida
“Os pobres têm me ensinado a ler a Bíblia”, disse Monsenhor Oscar Arnulfo Romero antes de ser assassinado pelo exército salvadorenho. Eu, biblista latino-americana, com cautela e diferenças, chego a essa mesma conclusão do Monsenhor Romero. É verdade que os pobres não me ensinaram os métodos das ciências bíblicas, nem o grego, nem o hebraico, e, contudo, os excluídos, entre eles os pobres, as mulheres, os indígenas, e agora as pessoas surdas,2 etc., deram o que na América Latina e no Caribe chamamos de releituras bíblicas. Por que esta afirmação? Em que sentido os marginalizados nos têm ensinado a ler o texto bíblico?
É muito simples, aprendemos por meio de duas vias: uma é a sua própria existência, e a outra é a sua práxis e palavra. De sua existência aprendemos a forma como experimentam a vida em um continente empobrecido. E aqui entram todos os excluídos, seja por classe, gênero, etnia ou raça; sejam estes honestos ou ladrões; justos ou malvados, compassivos ou insensíveis, ou as duas coisas destes binômios. A realidade mesma dos excluídos nos leva a observar detida e comovidamente a realidade em que se vive em nível cotidiano e macroestrutural. E esta realidade real, que em casos extremos beira o realismo mágico, como no caso das favelas, dos feminicídios, das gangues ou dos massacres, é o que força as vistas a ler o texto de uma perspectiva particular, muitas vezes tendenciosa por opção.
A opção hermenêutica de que a vida dos excluídos é o ponto de partida condiciona desde o início, não somente a observação “à frente do texto”, ou seja o “que diz o texto aos leitores de ontem e de hoje”, mas também a observação do texto literário em si, e por trás do texto, ou seja, o contexto no qual se produz o texto.3
Não pode ser de outro modo, já que as mortes sistemáticas de crianças desnutridas, de mulheres violadas e assassinadas, de homens e mulheres vítimas de guerras, guerrilhas e gangues, de suicídios de jovens e desempregados, estão na ordem do dia. 222 milhões de pessoas afetadas pela pobreza, das quais 96 milhões são indigentes segundo dados de 2004 do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), é um número que para nenhum biblista honesto com a realidade da América Latina e do Caribe pode passar despercebido.
A outra via de aprendizagem é a palavra e práxis dos excluídos críticos e em busca de alternativas. Fazemos esta distinção, “excluídos críticos”, porque nos anos setenta e oitenta havíamos idealizado o mundo dos pobres e miseráveis. Hoje em dia, na medida em que se aprofunda o ponto de partida da leitura bíblica, reconhecemos a complexidade e ambiguidade que reina nos distintos mundos e submundos latino-americanos e caribenhos. Contudo, a palavra e práxis dos excluídos com consciência crítica é fundamental. Daí procedem muitas intuições exegéticas e hermenêuticas que orientam a própria leitura e iluminam o trabalho do biblista ou líder eclesial, como monsenhor Romero. As comunidades cristãs populares e as redes de leitura popular ou comunitária da Bíblia são as que têm a autoridade em matéria de experiência na sobrevivência, a resistência e os sonhos, assim como os prazeres, as festas, a espiritualidade, ou seja, a forma como experimentam a presença e ausência de Deus.
Em síntese, o mundo cotidiano dos pobres ou excluídos é uma janela que permite ver a maneira como o mundo está estruturado, com seus espaços pequenos e grandes; com seus tempos curtos e longos; com as diversas vivências de sujeitos diversos: palavra da mulher, palavra negra, palavra indígena, palavra do pobre, palavra das crianças, dos jovens, dos anciãos, da cultura da comunidade surda, dos gays etc. Neste mundo se assenta a leitura popular ou comunitária da Bíblia.
A palavra e práxis dos excluídos com consciência é um dos marcos de referência obrigatórios para calibrar toda aquela leitura da Bíblia que tenha como ponto de partida a vida concreta e o contexto dos diversos sujeitos oprimidos e discriminados. Este ponto de partida constitui as pulsões que dão vida e razão de ser à leitura latino-americana e caribenha da Bíblia.
Saltos exegéticos e hermenêuticos
Na América Latina e no Caribe é possível afirmar que a Bíblia é parte integral da vida cotidiana das comunidades cristãs. Esta aproximação com a Bíblia possibilitou que aconteçam mudanças e saltos exegéticos e hermenêuticos, sobretudo em pessoas comprometidas com a realidade social, econômica, política e cultural de mulheres e homens. As mudanças de enfoque entre alguns não significam que ocorram com nitidez. De fato, muitos dos seus elementos seguem presentes e vigentes, de forma simultânea, no grosso do movimento bíblico latino-americano e caribenho. Deve-se tomar em conta igualmente que a luta hermenêutica sempre existiu desde a conquista europeia: de uma maneira lia a Bíblia Bartolomeu de Las Casas e de outra Toribio de Benavente (Motolinia). Não obstante, é muito interessante observar os saltos nas leituras, porque com ela se constata a maturidade das releituras bíblicas. Compartilharei três delas.
O redescobrimento da Bíblia como instrumento de libertação e empoderamento dos setores populares
No início dos anos sessenta começou-se a utilizar a Bíblia massivamente no mundo católico. A leitura da Bíblia deixou de ser uma prática exclusiva dos protestantes. Em um continente majoritariamente católico, este fato foi um marco no mundo dos cristãos. A Bíblia foi vista como um livro libertador que alimentava uma espiritualidade desejosa de um novo mundo. Nela se encontrou um Deus solidário com os sofrimentos dos oprimidos ou as vítimas das ditaduras, um Deus que acompanhava as lutas populares de libertação. Imperava a leitura militante da Bíblia. A Bíblia era considerada em sua totalidade como um instrumento de empoderamento dos pobres e carentes de dignidade por seu caráter de libertação. É sabido que o livro do Êxodo, sobre a libertação da escravidão no Egito, era um texto privilegiado, assim como os livros dos profetas, que denunciam as injustiças que se cometiam contra os pobres por parte dos impérios do momento ou pelos próprios dirigentes de Israel ou Judá. O Jesus dos Evangelhos era (e segue sendo) visto como sendo um líder do movimento que animava um segmento por meio da prática da justiça diante do império romano e diante dos líderes religiosos que menosprezavam os marginalizados. A prática social, política e religiosa de Jesus foi o que levou ao seu encarceramento e à pena capital na cruz. O Apocalipse é outro livro privilegiado, pois nele se via a repressão dos cristãos por parte do império romano.
Estes eram tempos de pouca exegese e muita hermenêutica condicionada pelos tempos de lutas de libertação ao longo do continente. O alimento das reflexões bíblicas era a vida dos pobres, e sua palavra. Era e é difícil para os eruditos fazer releituras bíblicas contextuais sem escutar os gritos e sem sentir a paixão ou a dor dos excluídos.
Neste tempo se descobriu a sabedoria que vem da experiência concreta. Dona Luisa, uma senhora humilde da igreja metodista, me disse uma vez, no começo dos anos oitenta: “Elsa, diga-me, por que Agar é tão maltratada por Sara e Abraão?” Não soube o que responder, porque nunca havia estudado essa passagem da perspectiva de Agar, somente da dos patriarcas e da bela Sara. Isso me motivou a olhar o texto com os olhos de Agar, a mulher marginalizada por ser escrava, egípcia e mulher. As chaves hermenêuticas mudaram. Somente uma pessoa como Luisa, que havia sido empregada doméstica, viu-se a si mesma como Agar. Uma nova leitura empoderou Luisa: Agar não foi abandonada por Deus, ela é a única mulher beneficiária de uma epifania na Bíblia hebraica; ela desmascara as ações de Sara e Abraão, etc. Como este exemplo há muitos. O Evangelho de Solentiname é um exemplo da leitura popular da Bíblia deste tempo. Por isso digo que o monsenhor Romero não enlouqueceu quando disse: “os pobres me ensinaram a ler a Bíblia”.
Quando se descobriu a Bíblia como um livro que podia iluminar as lutas populares (no final da década de sessenta), a aproximação hermenêutica era voltada quase exclusivamente desde e até os leitores de hoje, isto é, até o que se tem chamado: “à frente do texto”. O mundo da Bíblia não era visto como tão distinto do mundo de hoje. Novos desafios surgiram quando os leitores adquiriram rosto concreto — cor e gênero — e passaram a ser sujeitos na produção das leituras bíblicas.
O descobrimento da Bíblia como um livro ocidental e patriarcal
Mulheres e indígenas, interessados no trabalho bíblico, pouco a pouco foram se dando conta de que a Bíblia não era tão libertadora como o proclamávamos. Os indígenas, os negros e as mulheres formavam parte do contingente dos pobres oprimidos economicamente. Isso era verdade, contudo, a reivindicação de outras opressões e discriminações nos diversos sujeitos se sentiu com força. A transversalidade nos sujeitos é um fato inegável.
Ver as mulheres como sujeitos dupla ou triplamente oprimidos exigia novas ferramentas exegéticas e hermenêuticas que ajudaram a descobrir a revelação de Deus em um mundo bíblico patriarcal. A leitura ingênua e literal da Bíblia pode com facilidade legitimar a violência e os assassinatos contra as mulheres e os homossexuais. Os textos nos quais há um evidente patriarcalismo e homofobia podem ser instrumentos de sacralização do patriarcalismo atual.
Se, no princípio, tratava-se de extrair sentidos libertadores em textos pós-paulinos como o de 1Timóteo 2.12, que diz “não permito que a mulher ensine nem exerça autoridade sobre o varão”, agora se rejeita o texto aludindo a novas aproximações exegéticas. O estudo do “por trás do texto” começou a ser chave para se compreender melhor os contextos nos quais se produzem os livros bíblicos. Não é que não se estudava anteriormente, mas que, devido à reivindicação dos novos sujeitos, o estudo do contexto “por trás do texto”, não somente econômico, mas também cultural e religioso, começou a ser vital e inevitável para compreender melhor todos os livros da Bíblia, em especial aqueles nos quais havia cumplicidade com opressões e discriminações.
Indígenas e negros passaram a criticar fortemente a Bíblia por haver sido utilizada como instrumento de opressão durante a conquista e a escravidão e por exterminar a fé dos demais povos. No Peru, no ano de 1985, os indígenas devolveram a Bíblia a João Paulo II, como um ato de repúdio pelo dano causado às culturas indígenas, sobretudo pela tentativa de aniquilação de sua religião e cultura.4 Este ato foi um marco no movimento bíblico para dar um salto na busca de novos caminhos exegéticos, mais pluralistas, menos ocidentais. As experiências diárias, a perspectiva de diversos mundos, e as múltiplas experiências de Deus, não encontraram lugar, nem nas interpretações libertadoras que se faziam, nem nos próprios textos. O diálogo interreligioso e intercultural com a Bíblia se impôs nestes setores. A herança espiritual ancestral, tanto dos povos originários como dos afrodescendentes, têm muito a contribuir com um livro cujas interpretações afirmam a exclusividade e universalidade de um único Deus e Salvador do mundo. O “outro empobrecido” não é o mesmo que o pobre em termos genéricos. A alteridade, tanto nas relações de gênero como interculturais, trouxe perguntas radicais que transcendem o cânon e a ortodoxia, tal como é compreendida pela tradição. Estas perguntas seguem presentes até hoje. A Bíblia se tornou outra vez um novo livro para ser relido.
O descobrimento da Bíblia como um livro com poder tanto para dar a vida como para matar
A Bíblia é um livro cujos escritos não escapam da ambiguidade. Esta constatação pode não ser novidade para os especialistas em Bíblia, que não vivem as Escrituras com a paixão como se vive no interior do movimento bíblico, com suas redes de Bíblia, comunidades populares, ou grupos de mulheres, indígenas ou afrodescendentes. Chegar a esta descoberta e assumi-la como um fato libertador tem sido um processo de aprendizagem e de convivência coletiva com a Bíblia como revelação escrita de Deus. Isso não elimina os desejos de que a Bíblia seja um livro libertador, já que para nós, rejeitar um texto bíblico que legitima as opressões ou promove exclusões pode ser também profundamente libertador. Tudo tem a ver com a maneira como se acolhe ou rejeita a leitura, sem que por isso deixe de ser palavra revelada para os cristãos.
As constantes lutas hermenêuticas entre leitores que leem, uns do lado conservador do texto, outros do lado libertador, têm ajudado finalmente a reconhecer que isto se deve, por um lado, à natureza mesma do texto, sempre polissêmico, e, por outro, que a revelação acontece dentro da história humana, com ambiguidades e complexidades que lhes são próprias. Isto é algo novo entre os cristãos da América Latina e do Caribe, pois não se estava acostumado a ver o lado obscuro de Deus e do livro sagrado, como estavam os indígenas, herdeiros de outra fonte espiritual ancestral, cujas divindades têm seu lado enigmático. Deles temos aprendido a ver os rostos distintos de Deus. Suspeitava-se disto desde sempre, porém não se assumia com a maturidade com que se assume agora. Reconhece-se que há textos libertadores e há textos opressores, porém também se assume que pouquíssimos são os textos, se é que os há, que sejam absolutamente libertadores e absolutamente opressores. É o olhar de quem lê que privilegia os sentidos que o texto produz em conjunto com “seu detrás” e seu “à frente”. Os métodos exegéticos ajudaram um pouco a controlar as leituras; não obstante, dificilmente haverá coincidência no produto hermenêutico final dos distintos sujeitos. A observação condicionada do sujeito específico do hoje tenderá a ter a última palavra.
Esta leitura de muitos leitores do movimento bíblico latino-americano e caribenho não é igual à atitude dos estudiosos da linguagem, como Roland Barthes, que observam o texto e seus movimentos como um corpo vivo no qual todos os sentidos vêm à tona para serem desfrutados, sem enclausurá-los. Não, para nós, os latino-americanos e caribenhos do movimento bíblico, a clausura momentânea do texto (com exceção de algum poema agradável, com o do Cântico dos Cânticos, e às vezes nem este…) é uma exigência em cada situação de onde se lê. Ou seja, se no processo exegético se desconstrói o texto, se faz com a intenção de buscar sentidos que tenham palavra para a situação atual dos sujeitos excluídos e seu entorno. As leituras exegético-hermenêuticas não estão separadas nem da espiritualidade, nem da pastoral e nem da política. O novo é que se permite ao texto falar sem tratar de manipulá-lo para que seja libertador à força, como fazíamos conscientemente no início.
Ajuda-nos, nos dias de hoje, sem a polaridade ideológica que nos era familiar antes da década de noventa, que nos detenhamos próximos ao texto em si, suas interrelações, ritmos e complexidades com os autores virtuais; ver o texto lentamente nos ajuda a ver através de suas fissuras, as lutas de poder presentes dentro dos mesmos heróis bíblicos ou das comunidades cristãs primitivas. Lutas de poder em diferentes aspectos, como gênero, classe e visões religiosas. Reconhecer isto nos tem levado a ver nas Sagradas Escrituras a vida mesma, sempre ambígua e complexa, como a de todos os povos de hoje e do passado. Nos fez mais cautelosos nas interpretações, pois, como disse Ulrich Luz, interpretar não é “jogar com as palavras”, é ter em conta que nossas interpretações dos textos têm consequências históricas que podem ser tanto construtivas como destrutivas.5 A história do cristianismo a tem demonstrado. Neste sentido, vemos a Bíblia como fonte de sabedoria. De fato, os livros sapienciais têm muito o que dizer para o caminhar destes tempos. Não é por acaso que é agora, depois dos anos noventa, que estes livros começam a ser relidos.
Estes três saltos que mencionei, insisto, coexistem. Nas comunidades de base, entre os mais pobres, Deus segue sendo o Deus libertador, apesar da falta constante de libertação. É uma necessidade existencial. Aqui, deve-se entender que o lado “questionável” de Deus não interessa quando todos os lados do sistema econômico e político são desfavoráveis. Os grupos de mulheres, indígenas e afrodescendentes, também de setores populares, não se contentam com o texto em si, onde perdura uma interpretação ocidental; um texto cuja cultura que o produz é patriarcal. Estes sujeitos estão interessados em reivindicar novos horizontes e cânones ampliados, mais libertadores e menos excludentes. Os líderes do movimento bíblico são quem estão alertando agora sobre a importância de reconhecer a ambiguidade e a complexidade do texto bíblico para poder entrar em um diálogo honesto com ele; a revelação não foi concluída quando se fechou o cânon no século IV, mas cremos que o Espírito de Deus também ajuda a discernir por onde caminhar, que caminhos seguir para o bem-estar das maiorias mais pobres e excluídas da sociedade.
Em síntese, o “à frente do texto”, o “por trás do texto” e o “texto em si” estão presentes nos três momentos, embora haja uma ênfase nos distintos momentos: o “à frente do texto” domina a hermenêutica do Deus Libertador; o “por trás do texto”, na reconstrução do mundo bíblico patriarcal; e “o texto em si”, no reconhecimento da ambiguidade da Escritura. Os três momentos, contudo, estão condicionados pelo “à frente de”, a situação atual dos excluídos e excluídas. Pois estes e seu entorno, direta ou indiretamente, são quem indicam até onde dirigir o olhar no estudo das Escrituras.
Notas:
1.↑ Elsa Tamez, “La Biblia y sus lectores en América Latina y el Caribe”, em Pasos 128 (San José: Departamento Ecuménico de Investigaciones, 2006), p. 1-5.
2.↑ Neste momento trabalho em um projeto das Sociedades Bíblicas Unidas de leitura da Bíblia na perspectiva das pessoas surdas.
3.↑ A terminologia “por trás do texto”, “diante do texto” e “o texto em si”, retirei de WEST, Gerald. Biblical Hermeneutics of Liberation. Modes of reading the bible in the South African Context. Maryknoll: New York, Orbis, 1991.
4.↑ Citado por BOFF, Leonardo. A nova evangelização. Fortaleza: Vozes, 1990, p. 7.
5.↑ LUZ, Ulrich. Matthew in History. Interpretation, Influence and Effects. Minneapolis: Fortress Press, 1994, p. 33.