A descrição da realidade, quando explicada pelos dominadores, aparenta paz e prosperidade, mas o discurso desconsidera o que é verdadeiro a partir da experiência dos dominados
Logo no início da famosa carta aos Romanos, o Apóstolo Paulo, escravo do Messias, afirma: “Portanto, a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça” (Rm 1:18). Existem diversas formas de ler um texto bíblico: poderíamos pensar que esse texto traz uma verdade individual que vai me edificar; poderíamos dizer que Paulo quer falar sobre a maldade dos homens, e como eles têm uma natureza pecaminosa. Contudo, quero apresentar uma leitura um tanto diferente dessa passagem.
Certo filósofo alemão conhecido por sua excentricidade, Ernst Bloch, afirmou: “O real não é verdadeiro”. Como filósofo, ele apresentou argumentos para demonstrar a validade da sua fala. Não nos importa sua argumentação, dado que como a filosofia é a realidade em conceitos, ele construiu toda a sua fala a partir de conceitos que não temos tempo para debater. Algo nele, porém, concorda com Paulo. Veja essas duas imagens:
Pergunto: qual das duas é verdadeira? Qual das duas contém mais verdade? Ou ainda: podemos afirmar que a primeira é verdadeira? Acredito que não. Dessa mesma forma, o atual sentido das coisas não é verdadeiro. Quando recortei a imagem 2 para fazer a imagem 1, não editei nada, não mudei nenhum pixel; ela é exatamente um recorte da pintura do francês Jean-Baptiste Debret, chamada “Retour d’ un propriétaire” (no português, “Retorno de um proprietário”). Contudo, no momento em que fiz o recorte, eu ocultei a informação que o cavalheiro na rede, na realidade, estava sendo beneficiado por um sistema de dominação e desumanização: a escravidão.
Tentarei explicar de outra maneira. É correto, no sentido de estar embasado em dados concretos, afirmar que os Estados Unidos é o país mais influente no mundo, ou que a Europa é o continente com os melhores números de desenvolvimento. Mas afirmar esses fatos sem contrapô-los ao dado concreto de que, para que isso acontecesse, milhões de pessoas no mundo todo tiveram que ser exploradas, é faltar com a verdade. Dessa forma, Paulo, escravo do Messias, e Ernst Bloch, filósofo da esperança, concordam. A injustiça, no exemplo da Europa, com seu sistema de dominação colonial e imperialista que deu as bases para a construção de seu império, nega a verdade, nega o verdadeiro. Nega o verdadeiro porque é injusto, é a exploração mais claramente definível.
Voltemos a Paulo. Vimos como a verdade é negada pela injustiça; a prática da injustiça é a negação do relacionamento com Deus, é a negação da verdade. Em face a essa não-verdade, Deus se ira, e sua ira é revelada do Céu. Esta leitura paulina de que Deus se ira contra a injustiça não é grande novidade na tradição em que está inserida. O profetismo de Israel – se é que podemos falar de um movimento profético unificado – sempre lidou com a revelação de Deus em face à injustiça, e sempre enfatizou o quanto Deus não aceita relacionamento com injustos (Is 58). Outra versão diz: “a ira de Deus […] contra toda impiedade e injustiça dos homens que mantêm a verdade prisioneira da injustiça” (Rm 1:18).
Jesus inaugura seu ministério afirmando seu chamado messiânico de trazer a justiça. O real, injusto, negativo, que retira a possibilidade de criar do humano, mata Jesus. A morte de Jesus é a morte de Deus em um mundo injusto. Ao morrer, Deus toma o espaço dos assassinados, ele toma o lugar dos vencidos, dos dominados. Todos os que sofrem a injustiça do mundo agora podem dizer que Deus está com eles, enquanto se organizam para construir sua liberdade para a vida. Jesus toma o lugar dos vencidos, para que todo dominado tenha seu mesmo destino: a ressurreição. A ressurreição de Jesus é um fato absoluto; ela muda o rumo da história dos vencidos, e aponta que a força que move o mundo é a mesma que move os dominados em busca de sua ressurreição.
O real não é verdadeiro porque o que chamamos de real é a história dos que estão nos dominando. O que dizemos ser nossa cultura, é a cultura de quem vive a partir do nosso trabalho não pago. Os países de “primeiro mundo”, que tanto admiramos, são ricos, porque somos pobres. Não existe Suíça sem Burkina Faso.
A injustiça, sistêmica e encoberta, nega o verdadeiro, nega o Deus verdadeiro. Ela afirma um deus ídolo, que dá validação para nossos verdugos.
Assim, o sistema atual de produção e reprodução da vida, quando descrito pelos nossos algozes, é tido como meritocrático, como livre e humanista. Quando olhamos para as vítimas desse sistema, as coisas são diferentes. Ao ir à Faria Lima, achamos que estamos bem, que estamos nos desenvolvendo, gerando renda; mas quando vamos ao Mirante, bairro periférico de Arujá, SP, por sua vez uma cidade periférica da Grande São Paulo, a perspectiva é outra. Por isso, a Faria Lima e todos os bairros burgueses de São Paulo são falsos; eles não contêm, e suprimem, a verdade de que milhões de pessoas tiveram que trabalhar para que o senhor branco tivesse seu Porsche.
Da visão dos verdugos, nossa forma social é justa; mas a vida das grandes maiorias demonstra o contrário. Para o patriarca, o sistema patriarcal é justo; mas a vida das mulheres demonstra o contrário. Para muitos brancos, não existe racismo no Brasil; mas a vida de muitos pretos/índios/pardos demonstra o contrário. O “real” exibido pela Jovem Pan é falso, suprime a verdade dos dominados, suprime a prática da justiça. A esse sistema injusto, Deus demonstra sua ira, sua indignação. A ressurreição é uma dessas demonstrações, e nos convida à revolução.
Por isso, não devemos temer a negação do real. Não temos que ter medo de transformar as coisas, de chamar pela revolta e a revolução. A negatividade que forja nossa sociabilidade só será exaurida com muita luta e práxis. Assim, para nós, que pensamos o Cristianismo a partir dos vencidos, não podemos esquecer de que Deus está na luta; ele se move conosco, e somos seus co-criadores, pois criar novos mundos é parte essencial do que é ser cristão.