Críticas criacionistas ao evolucionismo são mais políticas que científicas, alvejando-o por perturbar a ordem hierárquica da sociedade
Paradies, 1530 (Lucas Cranach der Ältere).
Por Carl R. Weinberg | Ph.D. em História pela Universidade de Yale, e professor de História Moderna dos EUA na Indiana University Bloomington. É autor de livros como Labor, Loyalty, and Religion: Southwestern Illinois Coal Miners and World War I (2005) e Red Dynamite: Creationism and Anticommunism in Modern America (2021). Texto traduzido do original em inglês por Gustavo Oliveira para a revista Zelota.
Para defensores secularizados da ciência evolutiva, é fácil tirar sarro de Ken Ham e seu grupo de defensores da Terra Jovem, o Answers in Genesis [AiG; em português, “Respostas em Gênesis”]: seus dioramas em tamanho real, repletos de robôs animatrônicos de dinossauros vegetarianos brincando com humanos no jardim do Éden no Museu da Criação; a exibição do dragão — o AiG alega que a crença nessas criaturas mitológicas tenha base nos tempos em que homens e dinossauros caminhavam juntos pelo planeta; e o enorme barco de madeira na exposição Ark Encounter, no estado de Kentucky.
Em um primeiro momento, a publicação recente de Ham no site do AiG parece se enquadrar na mesma “caixinha de loucura”. Em “Sindicato de professores incentiva o assassinato de crianças não nascidas”, Ham se diz alarmado pelo fato de delegados na reunião anual da Associação Nacional de Educação (NEA) em Houston, Texas, terem aprovado uma resolução que apoia o direito fundamental da mulher à opção pelo aborto. Não é surpresa para ninguém que o AiG se opõe ao direito do aborto. Mas Ham vai ainda mais longe, descrevendo a reunião do sindicato trabalhista como um “lugar sombrio” que foi “infiltrado” por uma sinistra ideologia marxista/socialista. Teria ele perdido sua sanidade? O que o criacionismo teria a ver com as políticas do NEA?
Eu não possuo as mesmas crenças que Ham quando falamos sobre aborto, mas eu também não acredito que ele seja louco. Sua publicação pode nos ajudar a entender o que realmente se esconde por trás de todos os dinossauros, dragões e dioramas. Ham pode genuinamente acreditar que está liderando um “ministério” e, principalmente, trabalhando para a salvação de almas para o Senhor. Mas ele não está travando uma guerra opondo a “religião” à “ciência”. Ham e seus aliados estão levando adiante uma guerra cultural que é fundamentalmente sobre política — quem tem o poder para decidir viveremos nesse planeta.
A grande maioria das publicações de Ham em seu blog são dedicadas a responder a Associação Nacional de Educação (NEA) e seus argumentos pró-escolha com temas antiescolha: “nós não somos misóginos, nós amamos mulheres e amamos também suas crianças não nascidas; abortos são a maior violação dos direitos humanos; óvulos fertilizados não fazem parte dos corpos de mulheres”. Para qualquer um que apoia o direito das mulheres a escolher, esse talvez seja o mais estranho: “É tragicamente irônico que uma organização que deveria apoiar aqueles que ensinarão a próxima geração de estudantes promova a matança da próxima geração de bebês antes mesmo que eles nasçam!” Em outras palavras, os integrantes da NEA não são apenas imorais, mas estão também impedindo que os professores e professoras tenham segurança no emprego.
Mas a chave para a agenda política mais ampla do AiG pode ser encontrada na citação que Ham faz de Bryan Osborne, palestrante do AiG e ex-professor de escola pública que compareceu à reunião do NEA e ofereceu detalhes que Ham considerou perturbadores. Ham resume Osborne e suas ideias da seguinte maneira:
É um lugar sombrio… [Bryan Osborne] comentou sobre o espírito de rebelião e a ideia de ‘não continuaremos a aceitar isso’ que ecoava por todo o centro de convenções, nas imagens (como por exemplo os punhos cerrados e erguidos) que à mostra, e em muitas palestras também. Osborne também diz que a filosofia marxista e socialista — decorrente de uma visão de mundo secular e evolutiva — permeavam a convenção.
Falando de imagens, a foto que segue essa frase apresenta um banner imenso que no primeiro plano retrata uma professora afro-americana discursando em um megafone, ao mesmo tempo que uma grande multidão de pessoas ao fundo protesta com seus punhos cerrados. A frase no banner diz “Educadores. Nós trabalhamos para o povo.”
Sinceramente, esse é o tipo de convenção da qual eu provavelmente gostaria de participar. A questão é, o que faz com que isso seja tão assustador para Ken Ham e o AiG? Deixe-me traduzir para vocês: “lugar sombrio” e “rebelião” remetem ao rebelde supremo, Satanás. De acordo com os escritos de Ham, Satanás foi também o evolucionista supremo. Ham aprendeu isso com o seu antigo chefe no Institute for Creation Research [ICR; em português, “Instituto de Pesquisas da Criação”], Henry Morris, que expôs o argumento de forma mais completa em The Long War Against God [em português, “A Longa Guerra Contra Deus”] (1989).
E o que a ciência evolutiva tem a ver com o marxismo? Aqui, Ham está em um forte campo histórico. Apesar da noção popular de que as ideias evolucionistas foram implantadas apenas para propósitos conservadores através de algo chamado “darwinismo social”, o suporte da esquerda à ciência evolutiva foi tão real quanto o da direita, começando em seus primórdios com Marx e Engels. Em minhas pesquisas, eu descobri um tema consistente na retórica criacionista que conecta os supostos perigos da evolução, do comunismo e da imoralidade; uma poderosa combinação que o geólogo criacionista, George McCready Price, havia categorizado como “Dinamite Vermelha” em 1925. Por outro lado, Price e seus sucessores também argumentaram que a Bíblia endossa o capitalismo. Em última instância, eles acreditam que o pensamento evolutivo promove imoralidades sociais, sexuais e políticas, minando os padrões e hierarquias de poder dados por Deus.
Para apreender plenamente a política por trás das preocupações de Ham com uma “rebelião”, nós deveríamos lembrar que, nos últimos três anos, os Estados Unidos da América foram abalados por uma série de greves e protestos liderados principalmente por professores em estados majoritariamente republicanos, como: West Virginia, Arizona, Colorado, Oklahoma, North Carolina, e Kentucky. Ostentando camisetas vermelhas, os professores orgulhosamente proclamaram que são “Red for Ed”, inspirando-se nas tradições do movimento trabalhista e chamando a atenção para o triste estado dos orçamentos estaduais para educação. Esse ativismo encarna o “espírito de rebelião”, incluindo os punhos erguidos, animando o encontro da NEA de 2019. Por uma boa razão, os professores vêm dizendo, precisamente, “não vamos mais aceitar isso”. Então, quando Ken Ham e o AiG criam alarmismo sobre “rebelião” neste contexto, eles não estão apenas fazendo um argumento teológico obscuro sobre Satanás; eles estão dizendo, na verdade, que entrar em greve é maligno. Com isso, querem dizer que os trabalhadores em revolta agem contra a própria vontade de Deus.
Isso me faz pensar no que Ham diria aos mineradores de carvão em Blackjewel e suas famílias em Cumberland, Kentucky — apenas a quatro horas de carro do Museu da Criação em Petersburg, Kentucky —, que estão bloqueando os trilhos da ferrovia da mina de Harlan County, onde trabalham, em forma de protesto contra a falta de pagamento de salários. Esses trabalhadores estão colocando suas vidas em risco para dizer: “não vamos mais aceitar isso”. Seu slogan é: “Sem pagamento, não saímos”. Será que eles também são satânicos?
Para ser justo com Ham, deve-se reconhecer que embora os responsáveis da NEA tenham votado para garantir os direitos ao aborto, os professores estão divididos sobre esta questão. Quando Ham colocou sua postagem no Facebook (que foi compartilhada por mais de 2200 usuários), muitas pessoas que se identificam como professores de escolas públicas “curtiram” sua postagem. Um deles era um professor de pré-escola do condado de Kanawha, West Virginia, que participou da greve de 2018, mas não ficou feliz em ver uma mesa da Planned Parenthood em um comício da greve. Portanto, os trabalhadores precisam discutir essa questão, idealmente enquanto se engajam na luta comum para melhorar suas vidas e as vidas de todos os trabalhadores. À medida que participam dessa discussão, pode ficar mais claro o que está em jogo na verdadeira política do debate sobre a ciência evolutiva.