Embora a elite adventista controle o destino ideológico da instituição, uma vertente “perturbadora” reivindica o legado radical, enxergando o comunismo como a verdade presente para a justiça social
Terceiro texto da série “Como o adventismo me fez comunista? Dialética do fim dos tempos e hipocrisia adventista“. Leia aqui a parte 1 e a parte 2.
Seja nos EUA ou no Brasil, embora idealize uma separação do mundo, o adventismo não está desencarnado da história. Ele reproduz ideias humanas como qualquer outro movimento secular ou religioso. Em seu surgimento, apesar de seu teor anticatólico, recusou a temporalidade capitalista e o secularismo da burguesia liberal1 ao enunciar o sábado como forma de resistência. Mas embora com certo grau de rebelião, com o passar do tempo, as instituições adventistas — sobretudo as do sul global — se acomodaram muito bem à ordem da propriedade privada e do lucro. Com medo de perderem o poder, procuram controlar a mudança progressiva que constitui a história do adventismo.2 Somente aquilo que possui a chancela da elite cultural pode ser considerado como a verdade para o tempo presente. Contudo, de todos os temas abordados aqui, o posicionamento dos adventistas frente à escravidão é o mais embaraçoso e difícil de se controlar na articulação política da identidade adventista. Portanto, para fugir da radicalidade que o abolicionismo traz ao adventismo, sua elite tem procurado refúgio na autoridade eclesiástica e no contraditório discurso da providência.
Legado político radical dos pioneiros e o anseio revolucionário dos perturbadores
É do conhecimento de quase todo adventista que José Bates foi um proeminente abolicionista. Na verdade, a maioria dos pioneiros entendiam que a luta pelo fim da escravidão fazia parte do conteúdo das mensagens angélicas, tal como o sábado. Depois de ter abandonado sua antiga igreja, Bates relembra:
Ao abraçar a doutrina da segunda vinda do Salvador, eu já tinha mais do que o suficiente para preencher todo o meu tempo no sentido de me preparar para tal evento e ajudar outras pessoas a fazer o mesmo. Disse também que todos os que abraçavam a doutrina da segunda vinda seriam e necessariamente deveriam ser defensores da temperança e da abolição da escravatura (grifo meu).3
Este posicionamento político-religioso era comum na época. Os religiosos abolicionistas costumavam classificar a escravidão e outros problemas sociais como “feridas da nação”, com isso, não faria sentido curar uma e não outra.4 William Lloyd Garrison (personalidade citada por Bates que o influenciou quanto ao tema da abolição),5 opondo-se a todo tipo de coação, entendia que tanto a escravidão quanto a pena de morte representavam sistemas de brutalidade que mereciam ser destruídos, pois ambas eram causas inseparáveis.6 Nesse mesmo raciocínio, para Bates, abraçar a fé no advento significava, inseparavelmente, mudar seu estilo de vida através da temperança e lutar contra a escravidão. A santificação — assunto que divide os adventistas até hoje — para Bates não tratava-se apenas de uma purificação interior e subjetiva, era a bússola moral prática que o guiava para atacar a “raiz do problema” e endireitar todos os “caminhos em preparo para a vinda do Senhor”.7 Portanto, há na reforma de saúde e na luta pela abolição um caráter potencialmente duplo, isto é, político e religioso, o qual se funde e se materializa na concepção bíblica que Bates e os demais pioneiros possuíam de santificação. “A santificação exposta nas Sagradas Escrituras tem que ver com o ser todo”8 (1Ts 5.23), e se a escravidão “à vista do Céu” era “um pecado da mais tétrica espécie”,9 todo verdadeiro cristão deveria posicionar-se e lutar contra tal imoralidade, pois a “fé sem obras é morta” (Tg 2.20).
Contudo, no final do século 19, a posição adventista sobre o assunto não era nada inovadora, e tampouco a única possível sobre as Escrituras. Se para alguns a leitura bíblica conduziu à luta pela abolição, para outros ela era justamente o fundamento que legitimava a escravidão. Por exemplo, para Henry Ward Beecher, pregador mais renomado do Norte, a Bíblia era claramente contra a escravidão. Em sua opinião, o mal do qual os EUA enquanto nação mais desesperadamente precisavam se arrepender, “a causa mais alarmante e fértil do pecado nacional”, era a escravatura. No dia 4 de janeiro de 1861, Breecher convocou um jejum nacional para que as pessoas orassem pela cura do país.10
Já para James Henley Thornwell, do estado da Carolina do Sul (o qual também convocou um jejum nacional com os mesmos títulos de Breecher, “nossos pecados nacionais”), a Bíblia falou de maneira muito diferente. Para ele, a escravidão era a maneira “boa e misericordiosa” de organizar o “trabalho que a Providência nos deu”. “Que a relação entre o escravo e seu senhor não é inconsistente com a palavra de Deus, já decidimos há muito tempo […] Prezamos a instituição não por avareza, mas por princípio”.11
Estes dois posicionamentos parecem óbvios, tendo em vista que Breecher era do Norte e Thornwell do Sul. Entretanto, um mês antes de Breecher pregar seu sermão sobre a monstruosa pecaminosidade da escravidão, o reverendo Henry Van Dyke expôs o tema em sua congregação (localizada na mesma rua que a Congregacional de Breecher, em Plymouth), e suas conclusões não foram nada semelhantes às de Breecher. Para Dyke, a “árvore do abolicionismo é má, e apenas má — raiz e ramo, flor e folha, e o fruto que brota é nutrido por uma rejeição total das escrituras”. Em seu pensamento, a literalidade bíblica quanto à escravidão era tão clara que os obstinados abolicionistas só poderiam estar zombando da autoridade bíblica.12
Outra visão intrigante é a do rabino Morris J. Raphall, de Nova York, o qual entendia que a maldição de Cam em Gênesis 9, bem como diversas passagens de Êxodo, Levítico e Deuteronômio, tornavam a escravidão um sistema completamente bíblico e legítimo. No entanto, para Tayler Lewis, professor de grego e estudos orientais, primeiro na Universidade de Nova York e depois no Union College, o erro de Dyke e Raphall era não adotar o “ponto de vista dos apóstolos”. De acordo com Lewis, Dyke e Raphall pareciam não “considerar que, embora a verdade seja fixa, […] sua aplicação a eras distantes e a circunstâncias diferentes varia continuamente, de tal forma que uma direção errada dada à exegese mais verdadeira pode convertê-la na falsidade mais maligna”. Em resumo, sua posição fundamentava-se no argumento de que “não há uma palavra no Novo Testamento sobre compra e venda de escravos”. E como a compra e venda de escravos era intrínseca à escravidão americana, o Novo Testamento condenava tal sistema.13 Ou seja, havia dois grupos religiosos que se opunham sobre o assunto da escravidão nos EUA do século 19. Conforme salienta o historiador Mark A. Noll, enquanto os defensores da escravatura baseavam-se numa interpretação literal, os abolicionistas sustentavam que a escravatura violava o espírito da Bíblia.14
Note, este é o ponto fundamental: o posicionamento adventista frente à escravidão partia de uma leitura política quanto à violação do espírito da Bíblia. Este é um precedente extremamente problemático na história do adventismo. Embora digam que queremos atualizar a Bíblia, não se trata de inovação, mas da apropriação de uma posição do passado trazida para a solução de problemas atuais. Não é isso que os adventistas chamam de Verdade Presente? “A verdade atual precisa ser articulada com algo do passado que dê credibilidade e uma aparência de continuidade”.15 Ora, o encarceramento em massa da população negra, o contínuo assassinato de pessoas trans, o feminicídio de uma mulher no Brasil a cada sete horas, o aumento da exploração com o consequente adoecimento mental e suicídio dos trabalhadores não são violações do espírito da Bíblia tal como a escravidão? Por que lutar contra a raiz de todos esses problemas seria tão escandaloso ao adventismo atual? Objetivamente, porque este não é o único legado político possível do adventismo. Na realidade, para os acomodados, entender que nossa missão profética significa condenar as contradições do capitalismo e colocar-se diretamente na luta política para superá-lo trata-se de uma completa deturpação da verdade.
O legado político conservador dos pioneiros e a autoridade hipócrita dos acomodados
Conforme nos relembra o pastor Michelson Borges, o comunismo, o darwinismo e o espiritismo fazem parte da contrafação satânica que se opõem às três mensagens angélicas.
O comunismo, assim como o darwinismo, é filho da Revolução Francesa (besta do abismo, Ap 11). Os dois, assim como o espiritismo, fazem parte da contrafação satânica ao movimento restauracionista relacionado com 1844. É errado reduzir esse assunto a uma questão meramente política.
— Michelson Borges (@criacionismo) December 16, 2023
Embora pareça algo sensacionalista, ele está retomando textos de Ellen G. White para aplicá-los à atualidade (o que facilmente pode ser chamado de Verdade Presente, afinal a elite cultural do advento está autorizada a aplicar o espírito de profecia a qualquer coisa). O único problema é que sua interpretação é anacrônica, ou seja, ele não a compreende dentro dos limites e dos significados de seu próprio tempo. No século 19, quando Ellen G. White cita a Revolução Francesa em seu livro, O Grande Conflito,16 ela o faz no mesmo sentido de quando menciona Napoleão Bonaparte. Para uma mulher que viveu na Era Vitoriana (1837-1901), as consequências da Revolução Francesa deram cabo aos valores do mundo que lhe era conhecido. Como discutido na primeira parte, este foi um dos fatores condicionantes do tempo do fim adventista de sua época. No entanto, é válido lembrar que a Revolução Francesa não foi comunista; ela foi uma articulação encabeçada pela burguesia para tomar o poder do clero e da nobreza. O vocabulário e os temas da política liberal quanto ao nacionalismo e à radical-democracia que temos na maior parte do mundo hoje possuem influência deste processo revolucionário.17 Portanto, o posicionamento político de Ellen G. White quanto à Revolução Francesa se acomoda dentro de um grupo conservador e anticlerical. Contrária à burguesia liberal revolucionária (que propagou o ateísmo), também discordava do poder que o clero ocupava junto à nobreza francesa. Talvez seja por isso que ela exaltou tanto os princípios da Constituição Americana (que também é iluminista), anticlerical por um lado, mas religiosa por outro (seria a fidelidade de Ellen G. White à constituição americana também filha do iluminismo?).
É óbvio que Ellen G. White jamais escreveu sobre a Revolução Russa, chinesa, coreana ou cubana, mas, para a elite cultural do advento, seus escritos sobre a propagação do ateísmo na França podem ser facilmente aplicados às experiências socialistas do século 20. O problema é que o ateísmo comunista é diferente do ateísmo liberal. Enquanto o segundo é sumariamente militante por si mesmo, como se o ateísmo fosse uma verdade racional e universal, o primeiro não é militante por si, mas pelo que objetiva e materialmente produz o obscurantismo religioso, isto é, a opressão capitalista. Nas palavras de um convicto ateu, Vladimir Ilyich Ulyanov — popularmente conhecido como Lênin —, quanto à religião, os militantes comunistas devem:
traduzir e difundir maciçamente a literatura iluminista e ateia francesa do século 18. Mas, ao fazê-lo, não devemos em caso nenhum cair num modo abstrato e idealista de colocar a questão religiosa “a partir da razão”, fora da luta de classes, como não poucas vezes é feito pelos democratas radicais pertencentes à burguesia. Seria um absurdo pensar que, numa sociedade baseada na opressão e embrutecimento infindáveis das massas operárias, se pode, puramente por meio da pregação, dissipar os preconceitos religiosos. Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo econômico que existe dentro da sociedade. Não será com livros, nem com nenhuma pregação, que se poderá esclarecer o proletariado, senão com a sua própria luta contra as forças sombrias do capitalismo. A unidade desta luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões entre os proletários sobre o paraíso no céu. É por isso que não declaramos e nem devemos declarar o ateísmo no nosso programa.18
Para os comunistas, a propaganda anticlerical e descrente dos iluministas franceses é válida para a denúncia do interesse político dos religiosos, mas os comunistas não devem lutar em prol do ateísmo e muito menos declarar que apenas ateus podem fazer parte do movimento. A proximidade com o ateísmo entre os comunistas é consequência de sua visão material e científica do mundo. Contudo, a permissão para difundir literatura ateia é suficiente para a elite cultural do advento generalizar e considerar o socialismo como “filho da Revolução Francesa”. Ora, se isso lhes é permitido, por que os perturbadores (ou subversivos, como gostam de chamá-los) não podem fazer o mesmo ao considerar o liberalismo — sustentáculo do capitalismo — também como “filho da Revolução Francesa”? Pois, quando Ellen G. White chama o ateísmo francês de “besta que emerge do abismo” (Ap 11) ela estava se referindo, histórica e diretamente, à burguesia liberal revolucionária.
Se, para a elite cultural do advento, a generalização entre o ateísmo comunista e o ateísmo liberal é a regra de interpretação, então temos que aceitar que a crítica de Ellen G. White aos ateísmos tratava-se de uma crítica ao anticlericalismo, pois é isso que os une. Porém, não pode ser esta a crítica dela, porque, enquanto protestante, ela também foi extremamente anticlerical, e sua denúncia pode ser facilmente usada por comunistas: “Roma influenciara os reis e as classes dominantes a manter o povo na escravidão, com o propósito de manter escravos tanto a alma dos príncipes quanto a do povo”.19 Portanto, ou aceitamos que existem diferenças entre ateísmos e anticlericalismos, e passamos a interpretar Ellen G. White dentro dos significados do seu próprio tempo, ou podemos harmonizá-la com qualquer um, inclusive com Lênin.
Entretanto, para o pastor Eleazar Domini e seus diversos vídeos anticomunistas, Ellen G. White não pode ser interpretada pela visão dos perturbadores — e muito menos pela de Lênin — porque ela foi enfaticamente contrária ao fim da pobreza. Quanto a isso, de forma fria e objetiva, ele está correto. Porém, seu equívoco — tal como o de Michelson Borges — é interpretar Ellen G. White sem considerar o contexto e o imaginário político-religioso que permeou os EUA na segunda metade do século 19. De fato, ela escreveu:
Não é plano de Deus que a pobreza desapareça do mundo. As classes sociais jamais deveriam ser igualadas; pois a diversidade de condições que caracteriza os seres humanos é um dos meios pelos quais Deus tem pretendido provar e desenvolver o caráter. Muitos têm insistido com grande entusiasmo que todos os homens devem ter parte igual nas bênçãos temporais de Deus; mas este não era o propósito do Criador. Cristo afirmou que sempre teremos conosco os pobres. Os pobres, bem como os ricos, são comprados por Seu sangue; e, entre os Seus professos seguidores, na maioria dos casos, os primeiros O servem com singeleza de propósito, enquanto os últimos estão constantemente colocando as suas afeições nos tesouros terrenos, e Cristo é esquecido. Os cuidados desta vida e a ambição das riquezas eclipsam a glória do mundo eterno. Seria a maior desgraça que já sobreveio à humanidade se todos devessem ser colocados em posição de igualdade em possessões terrenas.20
Entre 1875 e 1881, período em que Ellen G. White escreveu os folhetos que formam o volume 4 de Testemunhos para a Igreja (do qual o trecho acima é parte), os EUA gestavam uma enorme crise teológica quanto ao tema da “providência divina”. Durante a Guerra de Secessão (1861-1865), enquanto uns acreditavam que era “intenção da Providência que a raça africana fosse serva mantida numa condição inferior”,21 outros como Ellen G. White entendiam que a guerra tratava-se de uma punição do céu: “Deus está punindo o Norte porque eles têm por tanto tempo tolerado a existência do amaldiçoado pecado da escravidão”.22 Para ela, “tanto o Sul como o Norte estavam sendo castigados”.23
Com o fim do conflito e a derrota dos Confederados, muitos sulistas abandonaram a ideia de que Deus controlava os acontecimentos mundanos, pois parecia que ele estava agindo de “forma surpreendentemente contrária a si mesmo”.24 No entanto, para os adventistas, a vitória da União confirmou a fé que tinham na providência e nas visões que Ellen G. White havia descrito sobre o conflito:
Tive uma visão da trágica batalha de Manassas, na Virgínia. Foi a mais sangrenta e angustiante cena. O exército do Sul tinha tudo a seu favor e estava preparado para o terrível combate. O exército do Norte estava se movendo com triunfo, em nada duvidando de sua vitória. […] Foi então revelado que Deus tinha esta nação em Suas mãos, e não desejava que as vitórias fossem obtidas mais rapidamente do que Ele permitisse, e não consentiria que os nortistas sofressem mais baixas que o necessário, conforme Sua sabedoria determinasse, para puni-los por seus pecados. Houvesse o exército do Norte, nesse tempo, se esforçado além de sua desfalecente e debilitada condição, o tremendo esforço e a destruição que os esperavam, teria proporcionado grande triunfo ao Sul. Deus não permitiria isso, e enviou um anjo para interferir. O súbito recuo das forças do Norte tem sido um mistério para todos. Eles não sabem que a mão de Deus se fez presente.25
O significado da providência para Ellen G. White não é unilateral. Ela se posiciona a favor do Norte, mas também o condena — talvez para acalmar a consciência quanto às perdas da União. O grande desafio para os adventistas contemporâneos é aceitar que Deus puniu os soldados nortistas com a morte para pagar pelos pecados dos senhores de escravos. O dilema torna-se ainda mais tenebroso quando temos que considerar as atrocidades ocorridas durante o século 20. Sob essa perspectiva, como avaliar o Holocausto na Alemanha nazista ou o genocídio ocorrido em Ruanda? Qual seria a explicação para a colonização e o extermínio dos povos nativos da América, da África, da Ásia e da Oceania? Educá-los e prepará-los para receber a verdade?
Quando Ellen G. White menciona que “não é plano de Deus que a pobreza desapareça do mundo”,26 ela o faz sob o mesmo significado de uma providência educadora e purgadora. Deus usa a desigualdade e o sofrimento humano para nos ensinar uma lição, são meios pelos quais ele “tem pretendido provar e desenvolver o caráter”.27 Mas não é desumano, ou, no mínimo estranho, aceitar que a pobreza seja um instrumento de Deus para que a humanidade não se esqueça dele? Se o sofrimento da pobreza nos aproxima de Deus, qual era o efeito da escravidão? Qual a diferença entre esta interpretação e a crença em um fogo que queimará eternamente no Juízo Final (Mt 25.41)? Talvez seja menos problemático à consciência religiosa dos adventistas contemporâneos aceitar que Ellen G. White foi uma grande escritora e profetisa, mas que, tal como as Escrituras, não é inerrante.
Entretanto, ao aplicar tais pensamentos à atualidade sem considerar os limites de Ellen G. White dentro do seu tempo, o pastor Eleazar Domini parece reivindicar o legado político conservador que os pioneiros oferecem ao adventismo contemporâneo a fim de impedir o colapso de seu poder. A questão fundamental é que a autoridade eclesiástica adventista não sabe lidar com sua própria história, e por isso escolhe quais legados serão continuados e quais serão abandonados. Mas com a globalização (ou pós-modernidade, como adoram adjetivar), os espaços que socializam e constroem identidades28 não podem mais ser controlados pela elite cultural do advento com a mesma eficiência, pois estão além de sua autoridade. Portanto, após expurgar os “infiltrados” com a submissão, o ostracismo ou a exclusão, os acomodados têm procurado reforçar, em todas as suas mídias, o legado conservador e antirrevolucionário dos adventistas. A lição dos jovens do 1º trimestre de 2024 é apenas um exemplo dentre os muitos. Esquecem, no entanto, que o jovem não é uma tabula rasa e que pensa, não pela influência de outros, mas na dialética entre acomodados e perturbadores.
A globalização/pós-modernidade não é a causa das rupturas na história do adventismo, ela apenas proporcionou o palco para o desenvolvimento e a consolidação do inevitável. Vale lembrar que os adventistas da reforma, embora tenham tomado outro rumo na atualidade, surgiram por se oporem à decisão da Divisão Europeia, na Alemanha, a qual se articulou política e teologicamente, em 1914, para liberar os adventistas a participar da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Nesse sentido, o que a elite cultural do advento esperava dos perturbadores quando convidou o então vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, para palestrar na Igreja do UNASP-EC, em 2019? Acham mesmo que os jovens não percebem as contradições da lição ao lerem que “como servos de Cristo, somos chamados a ser discípulos que vivem pelos princípios e valores do Mestre, não militantes de um movimento ou de uma causa”,29 quando, na prática, nossos líderes colocam o lenço dos desbravadores em políticos? Por que a articulação política para fazer de algumas atividades adventistas, dias nacionais e municipais é validada pelos acomodados, enquanto as reivindicações dos perturbadores são vistas pejorativamente como “mera” militância?
No Brasil evangélico em que vivemos, a única coisa que impede os acomodados de se entenderem como um movimento político é sua autoridade hipócrita, pois os perturbadores sabem muito bem que ao se oporem ao poder e apoiarem a emancipação — motivado pelo legado radical dos pioneiros —, sua religião é inevitavelmente política. Quando os acomodados insistem que “as falsas liberdades que levam à libertinagem e à insubordinação são falsificações da verdadeira liberdade”,30 fica evidente que eles retomaram as interpretações dos senhores de escravos do século 19: “escravos, obedeçam aos seus senhores terrenos como a Cristo, com respeito, temor e sinceridade de coração” (Ef 6.5). Para eles, socialismo ou insubordinação ao capital são tão libertinagem quanto a abolição o era para os senhores de escravos. Este cálice inebriante de uma religião que possui escolas, hospitais, indústrias, rádio, televisão e até previdência privada, apaziguou a santificação prática e política dos adventistas na denúncia e na construção de um mundo mais justo para legitimar a exploração do homem pelo homem. É por isso que, ao menos em parte, Karl Marx estava correto ao afirmar que a religião “é ópio do povo”.31 Digo em parte, porque há que se considerar o sentido que a religião nos proporciona. No entanto, quando institucionalizada sob este século tenebroso (como ocorre entre nós adventistas) e distanciada dos interesses próprios do povo, os acomodados se utilizam de nossos símbolos religiosos para operá-los “como órgãos da reação burguesa que servem para proteger a exploração e para intoxicar a classe operária”.32 Talvez a leitura de Friedrich Engels tenha sido a mais assertiva ao citar Joseph-Ernest Renan: “Se você quiser ter uma ideia das primeiras comunidades cristãs, olhe para uma seção local da Associação Internacional dos Trabalhadores”.33
Ao compreender que a solução dos comunistas frente a este século sem esperança é sua destruição total para construirmos um novo, me dei conta de que o legado profético mais radical dos pioneiros, que abominavam a escravidão e proclamavam o fim dos tempos, está muito mais no horizonte dos comunistas do que na hipocrisia institucional adventista, que permite relações políticas só quando lhe é interessante.
Conclusão geral
Trabalhar nos rodízios do UNASP-EC teve seus pontos positivos. Os laços que os trabalhadores forjam durante a luta e a inteligência revoltante que a desigualdade produz é o melhor produto que podemos criar. Ao compreender que estava ali não pela necessidade de comer aos sábados — porque se todos comem, todos deveriam fazer rodízio —, mas por uma condição de classe enquanto bolsista, conclui que a guarda do sábado não está ausente da luta de classes. Não demorou muito para perceber que todo o sistema adventista está travejado pela lógica do capital, e se é assim que as coisas funcionam, então temos uma contradição instalada no âmago do adventismo. Assim como as contradições do mundo burguês geraram uma classe realmente revolucionária, a história do adventismo é responsável pela crise entre perturbadores e acomodados.
Os adventistas brasileiros do século 21 precisam se contentar com o profetismo estadunidense que é reproduzido e imposto à sua realidade política, mesmo que isso signifique o abandono de sua essência enquanto intérprete dos tempos. Ao mesmo tempo que a elite cultural do advento exalta o Império e seu domínio global por ser a nação eleita, repleta de cinismo, insiste na separação entre Igreja e Estado. O grande problema é que a verdade para o tempo do fim latino-americano exige mais do que essa simples separação. Ou talvez esta separação seja uma tentativa falida que nunca fez sentido do lado de cá da “modernidade”, seja pela ótica do povo, que vive sua religião a partir da experiência histórica e política em que está,34 ou das instituições que conseguem facilmente contornar e simular a legalidade da república burguesa devido ao capital material que possuem. Isso significa que seu poder econômico (ao possuírem escolas, hospitais, universidades, etc) não necessita do Estado para impor suas observâncias como “decretos dominicais”. Os poucos funcionários não adventistas que trabalham em nossas instituições podem, pouco a pouco, ser impelidos a “não comprar e não vender” (Ap 13.17) aos sábados pela força ideológica que os ambientes adventistas promovem. Ao se acomodar sob a ordem do capital, contraditoriamente, o adventismo pode transformar seu próprio sábado na marca da besta. A falsa liberdade de consciência que o capitalismo oferece é muito mais sutil e perversa que a explícita apropriação política que ocorreu durante a Idade Média.
Por outro lado, o capitalismo faz do adventismo refém de sua produtividade incessante e o desafia quanto à guarda do sábado, empurrando os que nada possuem ao trabalho, seja no sábado ou no domingo. É por isso que enquanto alguns veem no comunismo a contrafação das mensagens angélicas, parte dos perturbadores entendem-no como a verdade mais urgente para o tempo presente a fim de superar as contradições que o capitalismo produz dentro da temporalidade cultural adventista, quilombola, indígena ou qualquer outra.
De fato existem divergências entre o posicionamento político dos adventistas radicais e a visão revolucionária dos comunistas. Enquanto os adventistas se entendem como pacifistas, os comunistas compreendem tal estratégia como uma tática moralista que visa sacrificar o trabalhador sem resultados reais para sua emancipação. No entanto, se esta é a defesa dos acomodados, então temos que refletir sobre o eleitorado adventista que votou em Bolsonaro e insiste em reproduzir falas como “bandido bom é bandido morto”, e “vamos fuzilar a petralhada”.
Para além disso, valem algumas questões para reflexão quanto ao pacifismo adventista:
- Os ideais de Bates sozinhos deram cabo à escravidão, ou ela só teve fim após um violento conflito?
- Se todos os soldados fossem como Desmond Doss, os Aliados teriam derrotado o Eixo e vencido a Segunda Guerra?
Martin Luther King não teve um final diferente de Malcolm X por defender a não violência. Como o pacifismo poderia ter ajudado João Cândido, durante a Revolta da Chibata em 1910, a cessar a continuidade das práticas escravistas, ou os sertanejos de Canudos a lutar por sua terra? A resposta é que resistir de forma pacífica não é a única (nem a melhor) possibilidade, e pode ser que os adventistas do Sul global — sobretudo trabalhadores, negros, mulheres e pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ — entendam melhor o que isso significa. É claro que um verdadeiro comunista jamais deseja a violência e o caos entre seu povo, mas nenhuma paz concreta e duradoura se conquista por acreditarmos na boa vontade de nossos carrascos.
No Brasil, a Verdade Presente está exclusivamente sob a autoridade da elite cultural do advento. Qualquer um que ousar questionar sua autoridade será acusado de ter abandonado a fé nos Testemunhos e na veracidade das Escrituras — como se a crença nestes dois últimos significasse aceitar a interpretação dogmática da elite. Ao recusar a diversidade que o legado adventista possui, sendo José Bates um obstinado abolicionista e Ellen G. White crente na providência, os acomodados escolhem dogmatizar o menos embaraçoso, aquele que causa menos problemas sociais. Como fariseus que interpretavam o reino inaugurado por Jesus não como cumprimento da Lei e dos Profetas (Mt 5.17), mas como desobediência e rebelião a eles, os acomodados reivindicam as Escrituras e os Testemunhos para negar a verdade que está diante de nós.
Talvez os acomodados estejam corretos em expurgar os perturbadores por não considerá-los mais adventistas; afinal, uma instituição tem o direito de centralizar suas regras, por mais hipócritas que sejam. O que não podem é negar que sua própria história conduzirá muitos a conclusões semelhantes. Se como perturbador me entendo enquanto comunista, assim o faço justamente porque interpretei os sinais do fim. Diferente do que dizem ou pensam os acomodados, para muitos como eu, não é o mundanismo que nos trouxe até aqui, é o próprio espírito profético dos adventistas. Isso não significa que todos os perturbadores são ou se tornarão comunistas, entretanto, os acomodados precisam compreender que o adventismo tem em sua identidade uma versão própria da Teologia da Libertação. E se eles insistirem no pacifismo como baluarte da ordem, então os perturbadores terão que decidir se o adventismo é suficiente para os sinais do tempo presente, ou se ele não morreu ao abraçar a verdade do Império (Ap 13).
Conclusão biográfica

Eu e meus amigos do Grêmio Estudantil junto aos professores no Centro Cívico de Curitiba durante a greve geral em 2015. Dois meses após essa foto, por continuarem protestando, os professores foram massacrados pela cavalaria com bala, bomba e gás, o que foi chamado de Massacre de 29 de abril.


Eu enquanto representante do Grêmio Estudantil, em julho de 2015, dando a abertura à VII Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente em Arapoti-PR.

Durante a faculdade colportei em todas as minhas férias. Cada uma em locais completamente distintos do Brasil. Ao todo foram seis, nas quais passei pelo Paraná, Tocantins, Goiás, Santa Catarina e São Paulo. Esta foto registra minha terceira campanha, em julho de 2018, na cidade de Goiatuba-GO. Foi nesta campanha onde encontrei o livro Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff. Nunca fui um grande estudioso da Teologia da Libertação, mas não posso negar que, com todas as suas limitações, este livro foi o pontapé inicial para compreensão teológica e política que tenho atualmente da América Latina.

Esta talvez seja a foto mais emblemática para mim. Foi durante os rodízios feitos no panelão do UNASP-EC onde percebi que o sábado não está ausente da luta de classes.

Este foi o melhor dia da minha vida. E para aqueles que insistem em dizer que a consciência de classe, a intelectualidade, ou o humanismo da Teologia da Libertação desvirtua o jovem, signifiquei este dia com um trecho de minha autobiografia: “Eu definitivamente não tenho dinheiro para bancar meu curso e minha mãe menos ainda. Mesmo assim, a cada mês recebo milagres em minha conta. Eu tinha dinheiro para pagar apenas dois meses do internato por consequência da bolsa que recebi, mas já estamos no quarto mês e tenho em minha conta quase o suficiente para custear todo semestre. Pessoas atuam em minha vida como mãos de Deus. Se eu pudesse resumir minha vida até aqui numa única citação de Ellen G. White, seria esta: ‘Nada temos a temer com relação ao futuro, a menos que nos esqueçamos da maneira pela qual o Senhor tem nos conduzido, e de seus ensinos em nosso passado.’”

Eu passando a lição da escola sabatina geral no Dia Mundial do Jovem Adventista em março de 2022.

Eu junto aos camaradas da Unidade Classista, em julho de 2022, carpindo um lote na ocupação para criarmos um Centro Comunitário aos moradores.

Eu palestrando sobre a inserção do adventismo no Brasil no Fórum realizado na Nova Semente sobre negritude e religiosidade, em novembro de 2022. Nele defendi que o adventismo brasileiro precisa urgentemente ser decolonizado.

Eu e os camaradas da Unidade Classista realizando uma formação sobre o surgimento do capitalismo e de suas contradições no mundo contemporâneo.
Ao olhar para trás percebo que trilhei meu caminho tentando ser fiel à minha consciência,35 pois aprendi desde cedo que, diante do questionamento de minhas crenças, preciso permanecer firme e “combater o bom combate da fé” (2Tm 4.7-8).36 Sempre lutei e continuarei lutando pelos meus. Esta é minha religião, o que me conecta aos meus irmãos e Àquele que me fez sua imagem e semelhança.37
Notas:
1.↑ Cf. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789-1848. 43 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019, p. 357.
2.↑ KNIGHT, 2005, p. 23-25.
3.↑ BATES, 2017, p. 248.
4.↑ NOLL, Mark A. The civil war as a theological crisis. The University of North Carolina Press, 2006, p. 1-5.
5.↑ BATES, 2017, p. 223.
6.↑ MANSUR, Louis P. Rites of Execution: Capital Punishment and the Transformation of American Culture, 1776–1865. New York: Oxford University Press, 1989, p. 157.
7.↑ BATES, 2017, p. 248.
8.↑ WHITE, Ellen G. Santificação, 2006, p. 7.
9.↑ WHITE, Ellen G. Testemunhos para a Igreja, v. 1, 1999, p. 363.
10.↑ NOLL, Mark A. The civil war as a theological crisis. The University of North Carolina Press, 2006, p. 2.
11.↑ Ibid.
12.↑ Ibid., p. 3.
13.↑ Ibid., p. 4.
14.↑ bid., p. 50.
15.↑ FOLLIS, Rodrigo. Memória, mídia e transmissão religiosa: estudo de caso da Revista Adventista (1906-2010). São Bernardo do Campo, Tese de Doutorado, 2017, p. 101.
16.↑ WHITE, Ellen G. O Grande Conflito: acontecimentos que mudarão seu futuro. 1 ed. (edição condensada). Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2007, p. 115-124.
17.↑ HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789-1848. 43 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019, p. 97-98.
18.↑ LENIN, Vladimir I. Lênin e a religião. 1 ed. São Paulo: Lavrapalavra, 2022, p. 85-86.
19.↑ WHITE, 2007, p. 121.
20.↑ WHITE, Ellen G. Testemunhos para a Igreja, v. 4, 2007, p. 537.
21.↑ NOLL, p. 42.
22.↑ WHITE, Ellen G. Testemunhos para a Igreja, v. 1, 1999, p. 359.
23.↑ WHITE, Arthur. Ellen White: mulher de visão. 1 ed, Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015, p. 84.
24.↑ NOLL, p. 75.
25.↑ WHITE, Ellen G. Testemunhos para Igreja, v. 1, 1999, p. 276.
26.↑ WHITE, Ellen G. Testemunhos para Igreja, v. 4, 2004, p. 537.
27.↑ Ibid.
28.↑ BELLOTTI, jul./dez. 2011, p. 33.
29.↑ REEVES, Joe. Liberdade: um conceito sob constante ameaça pela união político-religiosa. (Lição da Escola Sabatina Jovem). Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, jan. – mar. 2024, p. 23.
30.↑ REEVES, jan. – mar. 2024, p. 36.
31.↑ MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 145..
32.↑ LENIN, 2022, p. 92.
33.↑ ENGELS, Friedrich. Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2023, p. 31.
34.↑ CASTRO, André. A luta que há nos deuses: teologia da libertação à extrema direita evangélica. Rio de Janeiro: Editora Machado, 2024.
35.↑ Durante meu Ensino Médio (numa escola pública do interior do Paraná, acho importante dizer [2014-2016, período em que fui ordenado Diácono e Ancião]) as duas citações de Ellen G. White que mais ecoaram (e continuam a ecoar) em minha consciência foram:
- “A maior necessidade do mundo é a de homens — homens que se não comprem nem se vendam; homens que no íntimo da alma sejam verdadeiros e honestos; homens que não temam chamar o pecado pelo seu nome exato; homens, cuja consciência seja tão fiel ao dever como a bússola o é ao pólo; homens que permaneçam firmes pelo que é reto, ainda que caiam os céus”(WHITE, Ellen G. Educação. 9. ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2016);
- Lutero respondeu: “Visto que vossa sereníssima majestade e vossas nobres altezas exigem de mim resposta clara, simples e precisa, dar-vo-la-ei, e é esta: Não posso submeter minha fé quer ao papa quer aos concílios, porque é claro como o dia, que eles têm freqüentemente errado e se contradito um ao outro. Portanto, a menos que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pelo mais claro raciocínio; a menos que eu seja persuadido por meio das passagens que citei; a menos que assim submetam minha consciência pela Palavra de Deus, não posso retratar-me e não me retratarei, pois é perigoso a um cristão falar contra a consciência. Aqui permaneço, não posso fazer outra coisa; Deus queira ajudar-me. Amém.” (WHITE, Ellen G. O Grande Conflito: acontecimentos que mudarão seu futuro. 1 ed. (edição condensada). Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2007).
36.↑ Este era o verso predileto de meu avô, Juvenal Pires Fernandes, um ávido defensor do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que descansou em 2015, crente no segundo advento de Cristo; aprendeu a ler estudando a Bíblia, livro que tanto deu sentido à sua vida; exatamente por isso, era um assíduo comentador da política local de sua cidade; não perdia uma sessão sequer da Câmara Municipal de Arapoti-PR (recebeu até homenagem póstuma por isso). Semanas antes de falecer, durante a visita que fiz a ele, me pediu que cantasse seu hino predileto: Lindo País (571 do hinário antigo). Meu avô foi um fiel membro da Igreja Adventistia do Sétimo Dia até o último dia de vida; combateu o bom combate da fé. Não por acaso, este foi o verso que escolhi para finalizar a carta de exclusão que enviei à minha igreja local em 2023. O que me pôs para fora da IASD enquanto membro não foi ideologia secular, foi meu espírito religioso que, ouso dizer, é profundamente adventista.
37.↑ Não era meu desejo pedir exclusão da IASD, minha esposa é testemunha de todas as lágrimas que derramei. Insisti para que o pastor me levasse à comissão a fim de me explicar diante dos irmãos, mesmo que isso me fizesse ser disciplinado por seja lá o que eles imaginassem que eu tinha feito para escandalizá-los. A princípio meu pastor local disse que este era meu direito e que eu teria tal possibilidade. Contudo, segundo ele, após entrar em contato com a Associação sobre meu caso, disseram-lhe que não havia motivos para me levar à comissão. Com isso, o pastor recuou no que havia me dito e me informou que eu falaria apenas com os anciãos, e se depois disso houvesse necessidade, então seria conduzido à comissão local. Recusei tal proposta, porque além de prolongar a angústia que estava sentindo em mais etapas, eu seria sabatinado por pessoas que eu sabia não estarem nem um pouco do meu lado; tinha certeza de que se fosse até a comissão alguns irmãos e jovens entenderiam meu lado e minha derrota seria um pouco menor. Depois da visita que o pastor me fez, fui acusado por ele de não crer na veracidade das Escrituras, o qual (creio eu) inscreveu meu número de celular num curso para tentar “reciclar” minha visão teológica. No fim das contas não fiz curso algum e nem fui levado à comissão; eles me venceram na canseira e, sob muitas lágrimas, pedi exclusão. Mas este ensaio é uma tentativa exaustiva para demonstrar o quanto a fé adventista e as Escrituras importam para mim, sendo elas as principais responsáveis por me engajar na militância política e me fazer comunista. Sei que não estou sozinho neste barco.




