Num diálogo entre a teocracia de Flávio Josefo e a teologia do domínio à moda brasileira, Caio Peres reflete sobre como a teologia nos oferece acesso à história da experiência religiosa como parte da realidade política


A linguagem é dinâmica. O significado das palavras está na forma como a usamos. Teocracia se tornou um conceito popular no discurso político atual para definir a relação espúria entre evangélicos e a extrema direita. Sintomática disso é a aparição do termo no documentário Apocalipse dos Trópicos (2025) de Petra Costa, analisado e comentado à exaustão.

Em pesquisa aleatória no Google com a expressão “notícias, teocracia”, os dois primeiros resultados falam exatamente do cenário político brasileiro atual entre evangélicos e o bolsonarismo. Em um desses resultados, encontrei um artigo escrito por Jeferson Silveira Dantas para o Observatório da Imprensa com o título: “O Brasil rumo a uma Teocracia autoritária: o que o jornalismo tem a ver com isso?”. O texto é interessante e relevante. Ele reflete bem o uso do termo teocracia no discurso político atual ao associá-lo à presença e à influência de evangélicos na política brasileira. O autor usa teocracia como sinônimo de nacionalismo cristão e teonomia, ou seja, a aplicação de leis encontradas na Bíblia para definir as leis de países da atualidade.

O uso de teocracia para designar uma estrutura social dominada por representantes religiosos não é somente um fenômeno popular. Na academia, teocracia é comumente usado como sinônimo de hierocracia, em que sacerdotes funcionam como as principais autoridades políticas. Na minha área de pesquisa, o antigo Israel, Judaísmo do Segundo Templo e Bíblia Hebraica, esse uso de teocracia é comum.1 Não é à toa que isso acontece, já que o termo “teocracia” foi cunhado por um personagem histórico de extrema relevância para minha área de estudo: Flávio Josefo.

Josefo é conhecido por seu trabalho como historiador judeu no contexto do Império Romano, após a Primeira Guerra Judaico-Romana, em que o Templo de Jerusalém foi completamente destruído, no ano 70 EC. Contudo, o trabalho historiográfico de Josefo precisa ser entendido dentro de um contexto mais amplo. Josefo era membro de uma das mais importantes famílias de sacerdotes de Jerusalém. Ele mesmo dá testemunho disso ao dizer: “Eu não sou proveniente de uma família sacerdotal qualquer, mas de uma família da primeira divisão dentre as vinte e quatro; e como entre nós não existe somente uma considerável diferença entre famílias de cada uma das divisões, eu sou da principal família daquela primeira divisão” (Vida de Josefo, 1). Não é à toa, portanto, que Josefo tenha sido apontado pelo governo de Jerusalém para governar a Galileia em 66 EC, um pouco antes da guerra.2

A partir dessas informações, podemos afirmar algumas coisas sobre Josefo. Em primeiro lugar, como sacerdote, ele era um profundo conhecedor e intérprete da Torá, um teólogo judeu. Em segundo lugar, também como sacerdote no contexto romano, Josefo estava familiarizado com o pensamento político judaico e greco-romano. Em terceiro lugar, como governador da Galileia num período de guerra iminente com Roma, Josefo estava bem engajado com a realidade política do seu tempo. Em quarto e último lugar, como um judeu da elite sacerdotal e política, derrotado por Roma e trabalhando para Roma, Josefo tinha grande sensibilidade para evitar se ver em “maus lençóis” com seus senhores. Essa rica experiência religiosa, teológica e política, assim como esse complexo contexto sociopolítico, fazem com que o neologismo de Josefo ao cunhar o termo “teocracia” ganhe muita profundidade, sensibilidade e relevância no discurso político da época. Mais do que isso, existe uma intencionalidade religiosa e teológica muito significativa por parte de Josefo ao cunhar esse termo. O que poderia ser só mais uma nomenclatura política, na verdade, é carregado por uma metafísica e uma teologia refinadíssimas.

Eu não quero disputar o uso do termo “teocracia” no discurso político atual no Brasil. Como afirmei, a linguagem é dinâmica. Apelar para etimologias ou origens como forma de criticar o significado que as palavras ganharam é pedantismo. Meu interesse, na verdade, é apresentar a definição de teocracia em Josefo como exercício filosófico, teológico e político. A partir disso, quero levantar críticas sérias sobre como os evangélicos tendem a entender sua participação política, especialmente aos aderentes conscientes e inconscientes do que veio a ser conhecido como teologia do domínio.

Teocracia em Josefo

A primeira aparição do termo “teocracia” que nós conhecemos está na obra Contra Apion (2.165), de Flávio Josefo.3 A cunhagem do termo por Josefo já reflete a discussão política do contexto greco-romano em que ele participa ao definir a visão da Torá sobre uma entidade política (πολίτευμα). Seu ponto de partida é um contraste com outras formas de governo já conhecidas na Antiguidade: o governo de um só (monarquia), o governo de poucos (aristocracia ou oligarquia) e o governo das massas (democracia) (2.164). A teocracia, no entanto, coloca “toda a soberania e autoridade nas mãos de Deus” (2.165). Mais adiante, Josefo fala de teocracia como uma constituição que tem Deus como o governador do universo (2.185).

Poderíamos esperar que Josefo descrevesse o governo do antigo Israel como teocrático. Contudo, isso não acontece. Em outras obras, Josefo descreve Israel como uma monarquia, uma aristocracia e uma aristocracia-oligarquia (cf. Antiguidades Judaicas 11.109–113). Com isso, podemos começar a perceber uma importante nuança no pensamento político de Josefo e seu entendimento de teocracia. Seu uso de teocracia não exclui a realidade política de potências estrangeiras exercendo autoridade sobre Israel e, posteriormente, sobre as comunidades judaicas. Jeremiah Cataldo está certo ao dizer que o uso de teocracia em Josefo, portanto, é intrigante.

O que fica claro em Josefo é que teocracia não é uma forma concreta de administração governamental. Não estamos diante de uma forma de governo. Josefo, em seu contexto greco-romano, como um judeu da elite religiosa e política que foi massacrada pelos romanos, desloca a política de uma conversa sobre formas de governo para uma ordem metafísica do universo, ou para sua base teológica. Ainda estamos lidando com política, com as formas de estruturação e uso do poder, mas a partir de uma lógica bem diferente.

Ao cunhar o termo “teocracia”, Josefo faz um movimento típico que encontramos na Bíblia Hebraica. Ele remove o centro do poder e da autoridade do âmbito humano e o coloca no âmbito divino (o que não é o mesmo que o âmbito eclesiástico ou religioso). Em termos do que vemos no material bíblico, o poder humano, especialmente de reis e impérios, não determina a ordem do mundo e nem a história. A afirmação de que Javé é rei é, antes de tudo, uma negação de que qualquer ser humano possa reivindicar tal posição. Josefo, então, cunha o termo teocracia para negar que a discussão política deva ser definida por quem governa. A questão política, do poder e da autoridade não precisa ser, necessariamente, uma questão sobre formas de governo e quem está em seu comando. Portanto, para Josefo, teocracia é um conceito apologético contra os impérios em defesa da “santidade, nobreza e proeza intelectual do judaísmo”.

Com certeza, Josefo é muito perspicaz aqui. Em sua situação, como judeu da elite religiosa e política derrotada por Roma, mas trabalhando para Roma, defender o judaísmo seria facilmente entendido como um desafio à dominação de Roma sobre os judeus. Mas Josefo cria o termo “teocracia” exatamente para questionar que a política governamental seja a definição real da política e da estruturação de poder. Mais uma vez, Josefo está agindo em total alinhamento com os autores bíblicos diante de uma realidade cruel: Israel e Judá não são páreo para o poder político dos impérios, seja o Egito, a Assíria, a Babilônia, a Persa, a Grécia ou Roma. Escolher uma disputa de poder nesse âmbito é aceitar que Javé é um derrotado, junto com o seu povo. Em vez de buscar defender Javé como mais poderoso que os imperadores em seu próprio jogo político, determinado por formas de governo e dominação pela força militar, os autores bíblicos e Josefo percebem que existe outro caminho de atuação política como povo de Javé.4 É aqui que entra o termo teocracia.

Essa forma de pensamento político dos autores bíblicos e de Josefo me remete ao diálogo entre Jesus e Pilatos:

Pilatos entrou novamente no Pretório, chamou Jesus e lhe perguntou:

— Você é o rei dos judeus?

Jesus respondeu:

— Esta pergunta vem do senhor mesmo ou foram outros que lhe falaram a meu respeito? […] O meu Reino não é deste mundo.  Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas agora o meu reino não é daqui.

Pilatos perguntou:

— Então você é rei?

(João 18:33–34, 36–37)

Tipicamente entendido como uma forma de espiritualização da política, o diálogo de Jesus reflete um pensamento judaico bem alinhado com a Bíblia Hebraica e Josefo. Não se trata de espiritualização, mas de subversão do discurso e da lógica política imperial baseada em formas de governo, de quem está em seu comando e quem está submisso. Vejam como Josefo trabalha as implicações do que ele entende por teocracia, ou seja, a afirmação de que o poder está no âmbito do divino e não do governo.

No âmbito humano, Josefo destaca o importante papel de Moisés, como legislador, e dos sacerdotes, como aqueles comissionados por Deus com “a administração dos assuntos mais importantes” (2.185). Sabemos, contudo, que este não é um tipo de “governo de poucos”, sendo esses poucos os sacerdotes, ou seja, uma hierocracia. Isso tornaria fútil a cunhagem do termo teocracia. Aqui entra a profundidade teológica e a agudez da metafísica de Josefo. Ele argumenta que a essência (termo técnico da filosofia grega clássica) divina é desconhecida. O que é revelado à humanidade é o poder divino (2.167) como “a causa de todas as coisas boas […] comum a toda a humanidade […]” (2.166). A revelação do poder divino é o que Josefo vê como a definição e o propósito da teocracia (2.165). É aqui que o papel de Moisés como legislador e dos sacerdotes como administradores ganha seu fundamento e propósito. Seu papel principal é “implantar” o conhecimento nas massas, para que cada indivíduo o tenha “gravado” em sua vida (2.169, 178), um forte contraste com o confinamento do conhecimento na filosofia e na política greco-romanas (2.168-169).

Ainda mais intrigante é que Josefo visualiza a forma de constituição da sociedade como sendo “organizada como um rito de consagração” (2.188). Estamos verdadeiramente no âmbito das práticas e das experiências de culto como fundamento e moldura para a estrutura social, a qual é reflexo da estrutura metafísica do universo. Aqui vamos perceber o que Josefo entende por poder de Deus, e o papel de sacerdotes como administradores, mediadores e instrutores desse poder. Josefo fala de moderação sóbria no consumo sacerdotal de sacrifícios, pois seu propósito é a “comunhão comunitária”, resultante da responsabilidade dos sacerdotes de mediar o “bem-estar comum” (2.195-96).

O exercício humano do poder é uma forma de revelar o poder de Deus à humanidade, ou de manifestar o governo de Deus, e, nesse caso, isso ocorre numa forma de distribuição de poder que também é uma distribuição de recursos alimentares e inclusão, não exclusão, de outros no âmbito do culto. A autoridade sacerdotal revela o governo divino ao equipar ritualmente o povo para que este tenha acesso à presença divina por meio de sua participação no culto, com o compartilhamento de seus recursos materiais. O exercício do poder e da autoridade tem seu lugar como uma dinâmica entre líderes e leigos que reflete e revela o verdadeiro poder e autoridade no divino. Poder e autoridade, portanto, capacitam, equipam e abençoam toda a comunidade para que ela tenha acesso e experimente o poder de Deus como benéfico de muitas maneiras, inclusive materialmente.

Isso é profundamente político. É um desafio a todas as formas de governo ao mesmo tempo em que não se confunde com os poderes, as estruturas e os jogos políticos dominantes. Em Josefo, a ordenação da sociedade e a distribuição do poder não refletem formas centralizadas de governança política. Exatamente porque a teocracia de Josefo move a origem e o centro do poder, bem como da autoridade, para o âmbito divino, o conhecimento, o poder e os recursos materiais devem ser distribuídos entre todo o povo. Para que isso aconteça, espera-se que aqueles em posições de autoridade, especialmente os sacerdotes, renunciem a privilégios e posições de poder.

Como pode ser facilmente percebido, o termo teocracia em Josefo não é nem uma espiritualização da realidade política, nem uma disputa por poder no campo da governança. Como mencionado acima, a mudança do centro de poder e autoridade do âmbito humano para o divino é uma mudança do governo para o metafísico ou teológico, ainda mantendo sua forte relevância política. Isso é uma negação de que a política deva ser definida por formas de governo e regimes políticos; é uma negação de que a política tenha uma estrutura definitiva, como um tipo de ordem natural, e de que é só dentro dessa estrutura e participando dela que se torna possível disputar o poder. Na verdade, na teocracia de Josefo a participação política está muito mais na vida em comum do que na prática dos regimes políticos.

Isso cria uma forma de utopia teológica na qual o exercício humano do poder é sempre incompleto e suscetível à crítica. A teocracia utópica de Josefo vai além. Seguindo os escritos sacerdotais, Josefo coloca o poder de Deus como a fonte de coisas boas para todos que se encontra no lugar de habitação de Deus, no centro de uma comunidade de culto, não em qualquer governo estabelecido. O acesso à fonte de poder, isto é, à presença divina no culto, é, portanto, o propósito de qualquer autoridade religiosa como sua forma de participação política. Há uma ênfase forte aqui no acesso aos recursos alimentares. Esta é a razão pela qual Josefo se concentra na moderação do consumo sacrificial pelos sacerdotes, pois o acesso à presença divina, a manifestação do poder de Deus como fonte de bens para todos, envolve a promoção da comunhão comunitária na distribuição e partilha de recursos materiais (2.195-96).

Embora a teocracia em Josefo, assim como vemos na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento em geral, seja uma forma de fazer política fora do “jogo político” dos poderosos, não se trata de uma alienação política ou fuga da realidade. Em primeiro lugar, porque essa forma de pensar política amplia as possibilidades de participação e do exercício de poder, especialmente em contextos imperialistas ou de grande centralização de poder que impedem o envolvimento de pessoas comuns nas decisões e nas posições governamentais. Em segundo lugar, porque essa forma de pensar política imagina uma relação entre culto, estrutura social e estrutura metafísica do universo, como afirmei acima. É como se a experiência religiosa e cúltica servisse de modelo para o engajamento e a participação política em todas as suas dimensões, inclusive na dimensão administrativa dos poderes governamentais.

Teocracia e teologia do domínio

Acho difícil encontrar palavras fortes o suficiente para expressar a distância que vejo entre teocracia como conceito político e teológico, conforme Josefo, e o que vemos do engajamento político e da participação na política de evangélicos no Brasil atual, o que é bem definido como teologia do domínio.

Na teologia do domínio, aceita-se a lógica e o modus operandi da política como regime tipicamente imperial, justamente contra o que resistiam os autores bíblicos e Josefo em sua concepção da relação de Javé com o poder, com o mundo, com a história. Tanto Josefo quanto os autores bíblicos partem de um pressuposto de que a política não é uma questão sobre quem manda e quem obedece ou se submete, ou entre dominadores e dominados, mas de como o poder divino se revela no mundo. E essa revelação diz respeito ao bem-estar da comunidade em forma de distribuição de conhecimento e recursos — ou seja, na inclusão e no acolhimento dentro da comunidade cúltica e política como ambiente de encontro com o divino.

Por isso, o problema da teologia do domínio é tanto teológico quanto político. Ao aceitar a lógica e o modus operandi de regimes dominadores, Deus é inserido dentro do jogo político como o participante mais poderoso, dominador e, consequentemente, opressor. Deus é o Imperador. É exatamente uma versão atual de Israel pedindo um rei como o das outras nações (1Samuel 8), que nada mais é do que um pedido para ter uma divindade como a das outras nações. A teologia do domínio prefere um rei do Império que representa uma divindade do Império, com sua força militar para conquistar, dominar e controlar a tudo e a todos. É o caminho oposto do escolhido pelos autores bíblicos e Josefo em sua concepção de teocracia. A verdade é que a teologia política evangélica, bem representada pela teologia do domínio, tem como fundamento uma divindade diferente daquela que se consolidou nas tradições bíblicas. Isso pode ser chamado de teocracia no discurso popular, sem problemas, mas o theos, a divindade, que compõe essa forma de poder está mais perto de Assur, Marduque, Zeus, Júpiter, Augusto, e nada tem a ver com Javé ou Jesus.

A elite evangélica brasileira, diante da realidade política, escolhe disputar seguindo as regras do domínio que nem mesmo fazem parte da estrutura política de um país cujo regime político é a democracia representativa. Daí o motivo de a participação política dos evangélicos ser, corretamente, entendida como um tipo de fascismo e não uma participação democrática.

Tudo isso está enraizado na teologia e na forma de organização evangélica que encontrou solo fértil na experiência sociopolítica brasileira. Assim, quero concluir com um breve engajamento com o texto de André Castro na revista Zelota. A análise de Castro erra em alguns fundamentos importantes. Em primeiro lugar, ele descarta a influência de uma teologia dominionista na experiência religiosa e política dos evangélicos brasileiros porque somente considera sua versão neocalvinista. É verdade que a tradição neocalvinista gerou, via evangelicalismo estadunidense, uma teologia dominionista conhecida como teonomia reconstrucionista, pouco influente no Brasil. Mas não podemos esquecer como personagens dessa tradição teológica e eclesiástica (neocalvinismo) foram importantes na ascensão do bolsonarismo e no próprio governo Bolsonaro. Ora, tivemos um ministro da educação, Milton Ribeiro, que é pastor presbiteriano ligado ao Mackenzie. Temos um ministro do STF, André Mendonça, também pastor presbiteriano, recomendado por Silas Malafaia por ser “terrivelmente evangélico”. Pastores batistas como Guilherme de Carvalho e Sérgio Queiroz formaram secretarias no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos da Damares Alves. E aqui a relação política entre os evangélicos de tradição histórica, inclusive figuras que promovem o neocalvinismo, e os pentecostais da estirpe de Silas Malafaia e Damares Alves, que compartilham de uma mesma teologia e ideologia, não pode ser ignorada. A teologia compartilhada por eles é mais fundamental do que suas diferentes confissões. E isso se revela e se reflete no alinhamento de seu ethos e de sua práxis política e eclesial.

Em segundo lugar, Castro nem menciona a versão pentecostal da teologia do domínio, essa sim com grande capilaridade no Brasil. Conhecida como teologia dos sete montes, essa teologia política evangélica foi formulada de forma teórica por Peter Wagner, professor do Fuller Theological Seminary. Assim, trata-se, de fato, de uma teologia, um sistema que organiza essa experiência religiosa. Castro nega a existência da teologia do domínio por falta de formulação teórica ou por esta ser uma rotulação externa aos evangélicos. Nenhuma dessas afirmações é verdadeira no caso da teologia dos sete montes. Essa teologia foi e é extremamente influente no Brasil via organizações missionárias, como a Jovens Com Uma Missão (JOCUM), cujo fundador é um dos seus precursores e formuladores.5 A atuação de Damares Alves no meio evangélico, por exemplo, está totalmente relacionada com a JOCUM. A realidade de muitas agências e iniciativas missionárias evangélicas segue, consciente ou inconscientemente, esse tipo de teologia política dominionista.

E aqui acho que vale considerar esse fator inconsciente. Uma das questões levantadas por Castro para negar a existência da teologia do domínio no evangelicalismo brasileiro é uma preocupação em classificarmos os evangélicos como uma massa ignorante, controlada, sem agência, enganada. Além disso, Castro problematiza a forma de discutir teologia e política entre os evangélicos por pressupor uma relação de cima para baixo, numa via de mão única — como se atribuir à teologia uma influência concreta da experiência e na prática religiosa e política dos evangélicos fosse uma afirmação de que primeiro vem a “ideia” e só depois o “comportamento”. No artigo de Castro, também se pressupõe que explicar a relação dos evangélicos com a política por meio da teologia implica acreditar que os pastores sejam teólogos refinados e familiarizados com as discussões teóricas e históricas que permeiam sua experiência religiosa e política.

Se a discussão teológica nesse contexto fosse o que Castro está criticando em seu artigo, de fato ele teria razão. Essa forma de interpretar a experiência dos evangélicos na política é realmente problemática. No entanto, não acredito que Castro ofereça algo melhor em seu lugar. Ele ignora os dois pontos históricos levantados acima e, mais ainda, ignora o fundamento bíblico e teológico que permeia a experiência evangélica brasileira. Mesmo quando Castro fala da importância da experiência histórica dos evangélicos brasileiros para explicar sua relação com a política, algo relevante com o qual dialogarei logo abaixo, a força dessa proposta se perde por jogar de lado a questão teológica. Sim, simplesmente oferecer outras interpretações bíblicas que refutem a teologia do domínio, como no exemplo que Castro usa ao citar Leonardo Boff resolvendo o problema a partir de Gênesis 1.26, é totalmente insuficiente. Não é assim que a teologia funciona política ou historicamente de forma geral.

A relação entre teologia e a experiência material e histórica, da qual a política faz parte, não é aquilo que Castro apresenta como pressuposto para criticar discussões teológicas ao lidar com a relação entre evangélicos e a política. A teologia, como fenômeno humano linguístico e cultural, tem suas origens na experiência humana material e histórica. Isso não é exclusividade da teologia, é claro. O que a linguística cognitiva, os estudos cognitivos e a neurociência têm demonstrado e comprovado é que o raciocínio, a linguagem, o mundo conceitual que nos permite dar sentido à nossa experiência no mundo é totalmente encarnada, material e histórica.6 A experiência religiosa e o pensamento teológico não estão desvinculados da materialidade e historicidade da experiência humana. Não estamos no mundo das ideias abstratas sem conexão com o mundo concreto e real. Por isso, nem é possível falar sobre teologia como essa organização conceitual abstrata que precisa de um longo processo de disseminação até chegar “às massas”. Ora, Castro sabe muito bem disso, já que está bem familiarizado com as teologias contextuais das quais a teologia da libertação é uma das mais importantes vertentes históricas. A teologia, como fenômeno material e histórico, permeia desde os acadêmicos de Yale, passando pelos professores de seminários teológicos e pastores que pregam nos púlpitos das catedrais, e chega até os que pregam nas igrejas de garagem nas favelas brasileiras, assim como na “dona Maria” em suas orações e leituras bíblicas de joelhos em seu quarto. Independentemente da consciência e intencionalidade dos religiosos e teólogos, a teologia deve ser entendida pela experiência material e histórica, ao mesmo tempo em que a experiência material e histórica deve ser entendida pela teologia. Há uma via de mão dupla intrínseca aqui. Dessa forma, temos acesso à experiência material e histórica dos evangélicos brasileiros por meio da teologia, e não somente o contrário. Dizer que precisamos começar a priorizar só um desses lados é querer bater o martelo sobre quem veio primeiro: o ovo ou a galinha.

A teologia e a interpretação bíblica têm importância central no imaginário ideológico evangélico. Ignorar o seu papel como reflexo e reforço da experiência evangélica material e histórica — portanto, política — é se tornar insensível à própria experiência evangélica. O que tentei mostrar na análise do conceito de teocracia em Josefo foi que a teologia evangélica escolhe, politicamente e teologicamente, um caminho oposto ao oferecido pela literatura bíblica, lembrando que a teocracia de Josefo, como uma expressão daquilo que vemos na literatura bíblica, não é “só” teologia. Ela expressa a experiência material e histórica de uma comunidade política. Josefo e muitos dos responsáveis pela literatura bíblica eram sacerdotes judaítas vivendo sob os impérios que destruíram suas comunidades, sua religião e sua teologia. Essa teocracia, expressa em discurso teológico, é um ethos e uma práxis religiosa e política de uma comunidade histórica.  

Reconhecer isso ajuda a perceber a importância da teologia e da Bíblia para contrastar a teologia e a experiência evangélica brasileira. Pois a teologia do domínio também não é “só” teologia; ela é um ethos e uma práxis religiosa e política determinante e fundacional para a experiência evangélica brasileira. Não é um detalhe teórico sem importância política.

Quero dar um exemplo que, acredito, irá amarrar toda a discussão até aqui: o movimento de batalha espiritual. Qualquer pessoa que viveu no evangelicalismo brasileiros dos últimos quarenta anos está familiarizado com essa expressão religiosa que carrega toda uma teologia detrás de si. Essa teologia que funda o movimento de batalha espiritual nada mais é do que uma teologia do domínio. É verdade que, em muitas igrejas evangélicas pentecostais pobres e periféricas, a batalha espiritual é uma forma de resistência política subversiva, uma forma de lutar politicamente fora do jogo político dos regimes políticos. Contudo, e aqui é que está o pulo do gato, o compartilhamento de um mesmo fundamento teológico entre essa experiência religiosa subversiva de evangélicos pobres e periféricos com as lideranças teológicas evangélicas, mesmo as mais tradicionais — figuras como Franklin Ferreira, Guilherme de Carvalho, Ageu Magalhães, Rodrigo Silva entre outros, fazem teologia a partir do mesmo ethos e práxis de batalha espiritual, mas no campo daquilo que acreditam ser “teologia pública” — e as lideranças religiosas evangélicas que fazem parte da elite sociopolítica brasileira, faz com que experiências religiosas e sociopolíticas diversas convirjam no âmbito das disputas políticas seguindo a lógica e o jogo político partidário, como nós vimos no bolsonarismo. Um exemplo bem prático disso é a máxima tipicamente pentecostal de reivindicação de “ser cabeça e não cauda”. Trata-se de um grito político subversivo de evangélicos pobres marginalizados, mas que alimenta e se conecta com o slogan “Brasil acima de Tudo, Deus acima de Todos”. É assim que devemos entender a relação entre evangélicos de diversas vertentes e a teologia do domínio como um sistema que reflete e organiza (via de mão dupla, lembra?) a experiência material e histórica dos evangélicos brasileiros. Temos acesso a isso também por meio da teologia. Portanto, a teologia é ferramenta central para a análise dessa experiência evangélica e para a crítica e transformação dessa experiência. Em grande parte, foi a teologia que exerceu papel crítico e transformador nas comunidades políticas e religiosas por trás da literatura bíblica, e ela também pode fazer isso nas comunidades evangélicas brasileiras.

Agora, e aqui acredito que a crítica de Castro e a minha crítica a Castro se alinham bem, há a necessidade de lidarmos com o chão comum à realidade sociopolítica das instituições brasileiras, inclusive as instituições eclesiásticas, para entender a capacidade desse fundamento teológico de convergir diversas expressões e experiência evangélicas brasileiras. Castro menciona os estudos acadêmicos de Gedeon de Alencar sobre as estruturas de poder nas Assembleias de Deus como algo particularmente brasileiro. Castro cita particularmente a expressão cunhada por de Alencar, “episcopalismo eterno”, enquanto o próprio Castro apela para as expressões “pastor-presidente” e “pastor-empreendedor” quando fala sobre as relações de poder que permeiam o evangelicalismo brasileiro. Existe um forte fator autoritário e dominador na figura pastoral evangélica. E isso explica bastante como experiências evangélicas com um sabor politicamente subversivo podem se enxergar na extrema direita.O que seria interessante, portanto, é uma análise do comportamento político evangélico brasileiro de forma histórica, semelhante ao que Kristin DuMez fez nos EUA.7 Para explicar o fenômeno recente do apoio evangélico a Donald Trump, DuMez desvendou a ideologia histórica estadunidense que se reflete na figura do macho cowboy dos filmes de Velho Oeste de Hollywood por excelência: John Wayne. Entretanto, DuMez não ignora o papel da teologia em sua explicação. Acredito que Gedeon de Alencar e André Castro estão apontando para um caminho interessante ao falar das formas de organização das instituições evangélicas como algo tipicamente brasileiro. Falta, agora, identificar os fatores históricos e culturais tipicamente brasileiros que levam a essas estruturas de poder nas instituições evangélicas, e demonstrar a sua relação com a teologia. Seria o coronelismo, por exemplo, uma instituição frutífera para tal análise? Talvez. Mas deixo isso aos sociólogos e historiadores. Seja como for, ignorar a teologia e a interpretação bíblica nessa análise é ignorar aquilo que é próprio do evangelicalismo. E, como tentei demonstrar, a teologia é capaz de explicar grande parte do fenômeno evangélico em seu engajamento com a política, porque, no fim, teologia (inclusive a Bíblia) é política.

Notas:

1. Um exemplo bem claro aparece em Reinhard Achenbach, “Theocratic Reworking in the Pentateuch: Proto-Chronistic Features in the Late Priestly Layers of Numbers and Their Reception in Chronicles”. In: Chronicles and the Priestly Literature of the Hebrew Bible, editado por Jaeyoung Jeon e Louis C. Jonker (De Gruyter, 2021), 54.

2. Ver Douglas E. Oakman, “Late Second Temple Galilee: Socio-Archaeology Dimensions of Exploitation in First-Century Palestine”. In: Galilee in the Late Second Temple and Mishnaic Periods, Volume 2: Life, Culture, and Society, editado por David A. Finsey e James Riley Strange (Fortress Press, 2015), 349.

3. John M.G. Barclay, Against Apion. Translation and Commentary (Leiden: Brill, 2007), p. 262 n. 637.

4. Para duas abordagens bem diferentes sobre esse desenvolvimento teológico diante de um contexto político imperial de derrota por parte de Israel e Judá, que determina o material bíblico, ver Shawn W. Flynn, YHWH Is King: The Development of Divine Kingship in Ancient Israel (Brill, 2014) e Jacob L. Wright, Why the Bible Began: An Alternative History of Scripture and Its Origins (Cambridge University Press, 2023).

5. Para uma excelente análise da teologia do domínio nas duas tradições evangélicas, pentecostal e tradicional histórica, ver Tiago de Melo Novais e Breno Martins Campos, “Teologias do Domínio: Revisitando Fontes e Autorias”, Protestantismo em Revista 47.2 (2021): 29–40.

6. A obra mais completa e atualizada sobre o tema, até onde sei, é Mark Johnson, Embodied Mind, Meaning, and Reason: How Our Bodies Give Rise to Understanding (University of Chicago Press, 2017).

7. Kristin Kobes Du Mez, Jesus and John Wayne: How White Evangelicals Corrupted a Faith and Fractured a Nation (Liveright, 2020), com edição brasileira pela Thomas Nelson Brasil sob o título: Jesus e John Wayne: Como o evangelho foi cooptado por movimentos culturais e políticos.