Morre, em 21 de abril de 2025, Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, cujo pontificado histórico buscou reformar a Igreja Católica e reaproximá-la do Evangelho de Cristo


O túmulo deve ser no chão; simples, sem decoração especial e com uma única inscrição: Franciscus.
— Trecho do Testamento do Papa Francisco, escrito no dia 22 de junho de 2022

“[Senhor] Para aqueles que se sentem fracassados: Venha a nós o Vosso Reino. 
Para contrastar uma economia que mata: Venha a nós o Vosso Reino.
Para dar força aos que caíram. Venha a nós o Vosso Reino. 
Nas sociedades competitivas e para quem procura os primeiros lugares: Venha a nós o Vosso Reino. 
Para os que estão nas fronteiras e sentem terminada a viagem: Venha a nós o Vosso Reino”
— Francisco, Via Sacra no Coliseu Romano 18 de abril de 2025.

Participei da primeira liturgia depois da morte de Francisco. Há uma estranheza que se nota bem no coração do rito católico romano: a menção ao pontífice reinante não acontecendo. Se pede pela Igreja Universal e segue a ausência experimentada em todo o mundo católico, non habemus papam.

Uma ausência experimentada não somente nas liturgias e vivências eclesiais, mas também uma ausência fora dos muros da Igreja. Todos os caminhos levam a Roma na ausência sentida e na estranheza de perder Francisco.

Jorge Mario Bergoglio, o papa latino‑americano, acidentalmente argentino e o jesuíta com alma franciscana. O Papa Francisco surgiu “quase do fim do mundo”, como ele próprio brincou naquele 13 de março em que fora escolhido. Vindo de uma América Latina até então excluída e perseguida pela cúria romana, trazia consigo uma biografia de migração, pobreza e trabalho que o aproximava dos “pobres e oprimidos da terra”. Quando o cardeal Hummes o lembrou, durante o conclave, de “não se esquecer dos pobres”, Bergoglio entendeu que seu pontificado não poderia seguir as cartilhas da indiferença: “Francisco” não era apenas um nome, mas um projeto profético de uma Igreja que se percebia e afirmava pobre e para os pobres. 

Esse projeto ficou cristalino na Evangelii Gaudium, seu manifesto programático de 2013, onde ele definiu uma nova pauta para o governo da Igreja:

Prefiro uma Igreja danificada, ferida e suja porque saiu pelas estradas, a uma Igreja doente, agarrada às suas certezas, fechada num emaranhado de obsessões e procedimentos. Muitas vezes agimos como controladores da graça dos outros, mas a Igreja não é uma alfândega, é a Casa do Pai, onde há espaço para todos com sua vida cansativa.

Ali, Francisco contrapôs-se à “Igreja doente” do clericalismo na manutenção do poder missa-clero-domingo e da rigidez doutrinária, priorizando o anúncio misericordioso sobre a repetição dogmática de proibições. Nascia ali uma pastoral que caminha “entre os lobos” e repara a casa de Deus retirando-lhe as roupagens de pompa para devolver‑lhe o rosto dos que mais sofrem. Francisco, ainda naquele março de 2013, surpreendeu o mundo com sua estética: não queria o opulento apartamento pontifício, não sentou-se no dourado trono que ocuparam seus predecessores, não calçou os sapatos vermelhos de púrpura, renunciou ao ouro das insígnias. Não se tratava de mera aparência: Francisco, em cada gesto de seu pontificado, viveu aquilo que mostrava.

Francisco, iniciador que era de processos, reformou finalmente a cúria romana — tentativa frustrada dos últimos pontífices. Reduziu e fundiu dicastérios, implementou maior transparência financeira — não é muito lembrar o VatiLeaks, que fora um dos motivos da renúncia de Bento XVI —, e rompeu resistências internas.

Nomeou leigos e mulheres para cargos altos que antes eram ocupados apenas por bispos e cardeais — uma mudança sutil, mas profunda, no perfil de gestão ainda pré-moderno da Igreja. Dentro das contradições da masculina e velha Santa Sé colocou uma mulher, Rafaella Petrini, no mais alto cargo do Vaticano, ocupando a cadeira do Governaratto.

Por algumas das suas posições morais, recebeu a abertura formal de um processo que lhe acusava do que pior pode ser dito de um cristão: herege.

No entanto, um prelado não faz falta por ter colocado ordem apenas dentro da sacristia. Francisco, insistindo tanto para que a Igreja estivesse em saída para as periferias existenciais e sociais, fora ele mesmo um praticante disso. Sua primeira viagem apostólica ocorre como denúncia, enquanto todo o norte global sentia a problemática da migração e os primeiros muros apareciam como horizonte: Lampedusa, 2013. A questão migratória acompanhou todo o seu pontificado, e Francisco chamou o mar onde tantos morriam de cemitério. Na ocasião, e em muitas outras, obrigou paróquias e conventos a serem abrigo de refugiados e migrantes. Não apenas discursava sobre uma “Igreja Campanha”, mas a implementava.

Francisco investiu pesado no diálogo com o Islã, o judaísmo e as religiões orientais. Enquanto o Estado Islâmico o ameaçava de morte — e tinha seu plano assassino desbaratado por pouco —, Francisco foi ao Iraque do Oriente ferido. Atrás dele, uma das imagens que mais definem os nossos tempos: uma cidade em ruínas. O Documento sobre a Fraternidade Humana (assinado em Abu Dhabi, 2019) é um marco nesse campo do olhar descentralizado em prol da Fraternidade Humana. Recebeu autoridades religiosas muçulmanas e participou de encontros com comunidades judaicas, vivendo o que ele definiu e entendeu como “cultura do encontro”, construindo pontes e não muros.

Francisco, desde o início de seu pontificado, denunciou a “terceira guerra mundial em pedaços”, expressão que se tornou uma chave de leitura para os múltiplos conflitos que explodem pelo planeta em frangalhos sob o verniz de interesses econômicos, geopolíticos ou étnicos. Com coragem, apontou o dedo para os fabricantes e comerciantes de armas, acusando-os de alimentar guerras em nome do lucro, e não hesitou em criticar abertamente potências globais envolvidas em escaladas armamentistas. 

Seus apelos pela paz na Síria, Iêmen, Ucrânia, Gaza e Sudão do Sul foram constantes, mesmo quando ignorados pelos atores políticos. Mas mais que discursos, Francisco promoveu gestos concretos: encontros com vítimas, envio de emissários como o cardeal Zuppi para negociações paralelas, e a convocação de dias mundiais de oração e jejum pela paz. Numa época em que a guerra volta a ser normalizada como solução política, ele insistiu, sozinho e com teimosia evangélica, que a paz não é uma utopia ingênua, mas a única resposta humanamente possível. Dele é a expressão: ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva. 

Ajoelhou-se e beijou os pés dos presidentes do Sudão do Sul para implorar pela paz; Francisco abandonou a liturgia do poder e encenou, com o corpo, uma súplica profética: um papa de joelhos, diante de líderes armados, era o Evangelho em estado bruto.

Frente ao que o genocida estado de Israel faz sofrer a Palestina, Francisco não hesitou em chamar a atenção para o sofrimento do povo de Gaza, denunciando o bloqueio, os bombardeios e a espiral de morte que se repete como uma ferida aberta. Em sua visita à Terra Santa, em 2014, protagonizou um dos gestos mais fortes de seu pontificado ao beijar o muro de separação na Cisjordânia — um gesto silencioso, mas eloquente, que o colocou simbolicamente ao lado dos que têm sua dignidade negada dia após dia. Em seu último discurso, ele disse: “Penso no povo de Gaza e em sua comunidade cristã em particular, onde o terrível conflito continua a causar morte e destruição e a criar uma situação humanitária dramática e deplorável”. 

Francisco não era um chefe de Estado frio. Percebia-se próximo e ligava como avô, diariamente às 20h, para a paróquia de Gaza, e perguntava ao pároco se as crianças tinham comido, se estavam bem e se tinham brincado. Quantas não foram as vezes que, em seus últimos 18 meses de vida, ao ligar recebia a notícia de mortes e massacres.

O Vaticano, sob Francisco, firmou ou renovou importantes concordatas e tratados bilaterais, inclusive com Estados de aproximação historicamente difícil, como a China — com quem estabeleceu um acordo controverso sobre a nomeação de bispos, buscando alguma convivência institucional. Também houve esforço para manter relações diplomáticas com países onde cristãos são perseguidos, como Irã, Paquistão e Nigéria.

Francisco foi o único líder religioso com tamanha presença no debate climático global. Laudato Si, sua encíclica sobre a crise socioambiental e o cuidado da Casa Comum, virou referência até para agências da ONU e ONGs ambientais. Além de participar indiretamente nas COPs, lançou recentemente Laudate Deum (2023), cobrando ações climáticas urgentes e denunciando a lentidão dos acordos multilaterais.

Com firmeza inédita para um papa, Francisco denunciou o poder anônimo dos mercados. Em várias falas — e na própria encíclica Evangelii Gaudium — ele aponta o sistema financeiro como fonte de exclusão e sofrimento. É especialmente duro com o rentismo, a especulação e a “economia que mata”. Ao convocar a Economia de Francisco, buscou formas alternativas de economia social e solidária com jovens economistas de todo o mundo.

Francisco estabeleceu uma aliança inédita com os movimentos populares e sociais, enxergando neles não apenas forças políticas de base, mas verdadeiros ”poetas sociais” — expressão com a qual ele celebra sua capacidade de imaginar e construir alternativas concretas à lógica excludente do mercado. Desde os encontros internacionais promovidos pelo Vaticano, passando pelos fóruns regionais e pelas mensagens enviadas aos sem-teto, aos trabalhadores informais e aos camponeses sem terra, o Papa reconhece nesses movimentos uma espécie de vanguarda ética do nosso tempo. Longe de tratá-los como objeto de caridade ou apêndices marginais, Francisco os posiciona no centro de sua doutrina social, afirmando que suas lutas por terra, teto e trabalho não são apenas demandas políticas legítimas, mas expressões de dignidade e profecia. “Vocês são semeadores de mudança”, disse a eles, “lutadores com as mãos calejadas que constroem a paz e a justiça”.

Diante de um planeta em frangalhos, de economias pendendo pela corda bamba e de um tecido social cada vez mais rasgado, o magistério social de Francisco ofereceu uma cartografia de saída: reconfigurar indicadores econômicos para além do PIB, adotar índices que mensurem bem‑estar e saúde coletiva, instituir práticas fiscais que parem a concentração de renda e reformulem sistemas tributários para favorecer a justiça social. Assim, enquanto o mundo real desmorona em policrises, Francisco aponta uma trilha de resiliência profética: não o retorno a um passado idílico, mas a criação de novas alianças — econômicas, políticas e espirituais — capazes de estancar a ruína e edificar, a partir das cinzas, processos que coloquem a vida no centro.

É essa coragem visionária, em meio ao colapso, que faz de seu pontificado um baluarte de esperança para o nosso tempo. Francisco, como bom jesuíta, jamais pareceu movido pela obsessão de concluir ou encerrar com perfeição aquilo que começou. Ao contrário, assumiu a inacababilidade como método e horizonte. Seu estilo sempre foi mais o do semeador do que o do construtor meticuloso: planta ideias, inquieta estruturas, move placas tectônicas institucionais — e confia que o Espírito continuará a obra por outros meios, por outras mãos. Essa recusa a oferecer reformas “prontas” ou “embaladas” frustra os que esperam resoluções imediatas, mas revela uma compreensão profunda da humanidade como processo vivo, em discernimento constante, mais sinodal que sistemático. Sua teologia do tempo — marcada pela paciência, pela escuta e pelo conflito como lugar fecundo — já que o tempo é superior ao espaço, nos lembra que nem tudo precisa ser terminado para ser transformador. Afinal, no coração da espiritualidade de Francisco de Roma estava a confiança de que Deus age na história como fermento silencioso — e que, às vezes, os gestos mais revolucionários são aqueles que abrem caminhos, e não os que os pavimentam por completo.

Francisco partiu no dia 21 de abril de 2025. Roma celebrava seu aniversário de fundação, a festa que homenageia os 2778 anos da cidade. Aquela Roma que já conheceu Nero, Otavio Augusto, Trajano, Diocleciano e o emblemático Constantino. Roma que foi palco do derramar de sangue de Pedro e Paulo, cujas mensagens de universalismo evangélico mais tarde fizeram a suprassunção dos imperadores; Roma que um dia foi o centro do mundo, Roma que assistiu à ascensão, ao florescimento e ao declínio da Cristandade. Roma que viu o pobre e visionário Francisco de Assis, há 800 anos, com suas ideias de reforma e reconstrução. Roma que foi testemunha das chamas que consumiram e dos juízos que se abateram sobre os modernos Giordano Bruno e Galileu Galilei. Roma que acompanhou a antimodernização da Igreja e que sentiu as feridas das duas grandes guerras. Roma que, há exatos 60 anos, assistiu ao Concílio Vaticano II, quando a Igreja finalmente abriu a janela para o mundo moderno.

Naquele mesmo dia de celebração do seu aniversário, a velha Roma, cidade em que cabe o mundo inteiro, viu o mais argentino dos romanos se despedir. 

Até logo, Francisco de Roma. Deus abençoe para que do céu o senhor não interceda tanto pela seleção de futebol da Argentina.