Comparação dos regulamentos internos da Igreja Adventista com modelo que os inspirou demonstra a eliminação da participação popular e a concessão de poder desmedido à hierarquia
Por Meredith Jobe | Traduzido e adaptado do original em inglês por André Kanasiro para a revista Zelota. Republicado em colaboração com SPECTRUM: o periódico e website do Adventist Forum desde 1969. www.spectrummagazine.org
Em 1863, um jovem tenente do exército dos EUA recebeu um pedido inesperado: o de presidir uma reunião na Primeira Igreja Batista de New Bedford. A reunião logo saiu do controle, e Henry Robert diria sobre ela: “Nem é necessário ter muita experiência nas reuniões deliberativas de cristãos para perceber que os melhores homens, com suas próprias vontades, estão sujeitos a tentar realizar suas vontades sem respeitar devidamente os direitos de seus oponentes.”1
Robert decidiu nunca ficar despreparado outra vez, e por isso estudou procedimentos parlamentares.
De 1867 a 1871, [ele] atuou como engenheiro-chefe da Divisão Militar do Pacífico e viveu em San Francisco. Lá ele foi parte do Conselho da Primeira Igreja Batista e também do Conselho de Diretores do YMCA [Associação de Jovens Cristãos]. Questões conflituosas confrontavam os membros: Deveria ser o pastor ou a congregação quem aprova novos membros? As mulheres deveriam poder votar em assembleias administrativas? A igreja deveria se mudar para uma parte mais respeitável da cidade? A ‘Constituição’ da igreja, que guiava a conduta de assembleias administrativas, não era abrangente, nem precisa; uma de suas instruções era “amem e sejam gentis uns com os outros”. Infelizmente tais exortações não evitavam rancor, e as orientações criadas com inaptidão aumentavam os conflitos ao invés de diminui-los.2
Robert reconhecia a necessidade de um conjunto consistente de regras diretas que pudessem ser aplicada em diversas organizações. Ele inicialmente acreditava ser capaz de desenvolver e cobrir um conjunto básico de regras em 16 páginas. Mas então, 167 páginas depois, em 1876, ele publicou por conta própria um Pocket Manual of Rules of Order for Deliberative Assemblies (“Manual de bolso com regulamentos para assembleias deliberativas”) — mais conhecido pelo título que a editora colocou na capa: Robert’s Rules of Order (“Regulamentos de Robert”). O Robert’s Rules of Order Newly Revised (2020) já está em sua 12ª edição.

Cento e nove anos depois, após a Assembleia da Associação Geral (AG) de 1985, uma subcomissão da comissão executiva da AG desenvolveu o General Conference Rules of Order (Regulamentos da Associação Geral)3 — já em sua sétima edição e votado novamente este ano pela comissão executiva da AG, a tempo para a Assembleia Geral. Usado amplamente em vários níveis da denominação,4 estes regulamentos são feitos para guiar líderes da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) e permitir que “o trabalho das assembleias e comissões eclesiásticas possa fluir sem atrito, com eficiência e justiça”.5 Além disso, eles “não devem ser usados como desculpa para altercações procedimentais de modo a impedir o progresso de assembleias e comissões”.6
Conforme se aproxima rapidamente a 62ª Assembleia da AG, pode ser benéfico ter uma breve compreensão dos procedimentos parlamentares que governarão suas deliberações. Tendo isso em mente, pode-se avaliar as diferenças e semelhanças entre os Regulamentos da AG, de 14 páginas, e a 12ª edição dos Regulamentos de Robert, de 714 páginas.
O propósito dos procedimentos parlamentares
O termo “procedimento parlamentar” é derivado das regras e hábitos estabelecidas e utilizadas pelo Parlamento Inglês, e oferece um processo de tomada de decisões para assembleias deliberativas de todos os tipos e tamanhos. Regras parlamentares enfatizam a importância do processo decisório ao invés da sabedoria de uma decisão específica.
Embora os procedimentos parlamentares tenham origem na Inglaterra, Robert adaptou seu guia a partir das regras e práticas do Congresso dos EUA, que Thomas Jefferson compilou e refinou durante seu mandato como vice-presidente do país na época em que John Adams era o presidente. Robert buscou tornar “possível para as assembleias e sociedades se libertar da confusão e da disputa em torno de regras”.7 Ele afirma que “a grande lição que as democracias precisam aprender é que a maioria deve dar à minoria uma oportunidade livre e plena de apresentar seu lado do argumento, e então que a minoria, não conseguindo conquistar a maioria para sua perspectiva, submeta-se graciosamente e reconheça a ação como representativa de toda a organização, apoiando alegremente sua realização até que consiga garantir sua rejeição”.8
Compreendendo os efeitos práticos de procedimentos parlamentares
Minha primeira experiência como parlamentar foi em meu segundo ano estudando na Universidade La Sierra, quando o presidente do corpo discente na época, Kent Hansen, me nomeou para servir como parlamentar no senado estudantil.
Dezesseis anos depois, meu primeiro encontro significativo com procedimentos parlamentares ocorreu quando atuei como delegado na Assembleia da AG de 1990. Ansioso para ver pessoas de todo o mundo se reunirem para conduzir a administração da IASD, eu percebi rapidamente que não havia uma forma clara de determinar quando cada item específico da agenda seria apresentado ao coletivo. Antes da assembleia, eu recebi vários materiais relacionados à agenda, juntamente com um cronograma de reuniões; no entanto nada indicava quando cada tópico particular seria discutido.
Logo que a assembleia começou, eu me levantei diante do coletivo e fiz uma moção para estabelecer um cronograma de tópicos da agenda, de modo que os delegados soubessem a ordem e o horário aproximado em que cada assunto seria discutido na assembleia. O presidente da assembleia se recusou a votar minha moção, declarando-a improcedente. Notando minha frustração, ele orientou que eu poderia pedir uma votação para derrubar sua decisão, algo que fiz imediatamente. Mas os outros delegados prontamente apoiaram a decisão dele.
O que são os Regulamentos da AG?
Os Regulamentos da AG efetivamente condensam os Regulamentos de Robert em 14 páginas, cobrindo os tipos mais importantes de moções:
- Moções subsidiárias. “Auxiliar a assembleia no tratamento ou remoção de uma moção principal.”9 Exemplos incluem encaminhar uma moção para uma comissão, limitar o tempo de debate, ou remeter a uma questão anterior para encerrar o debate a respeito de uma moção. Os Regulamentos da AG reduzem o número de moções subsidiárias dos Regulamentos de Robert de sete para seis, eliminando a moção de adiamento para um momento definido. Ambos os conjuntos de regulamentos incluem a moção de encaminhar à comissão, o que permite ao coletivo passar uma moção pendente a um grupo menor para analisá-la com mais cuidado.10 Esta moção exige uma segunda, pode ser sujeita a debate — estritamente quanto a encaminhá-la ou não — e exige que a maioria da assembleia aprove o encaminhamento.
- Moções privilegiadas. “Não têm relação com os tópicos pendentes, mas têm a ver com questões especiais de importância superior e imediata que, sem debate, devem interromper a consideração de qualquer outra coisa.”11 Os Regulamentos da AG reduzem o número de moções privilegiadas dos Regulamentos de Robert de cinco para três, combinando duas moções similares e eliminando uma moção poderosa que permite a um único delegado solicitar à assembleia que aprove seu cronograma para a agenda — presumindo que ela exista.12
- Moções incidentais, incluindo moções que levantam uma questão novamente para a assembleia. Nos Regulamentos de Robert, estas são duas categorias distintas, que os Regulamentos da AG combinam na categoria de moções incidentais. Nos Regulamentos de Robert, moções incidentais dizem respeito a questões pendentes, tais como a nomeação para cargos, questões de ordem, ou a seleção de um método de votação.13 Já moções que trazem novamente uma questão para a assembleia permitem que ela seja mais debatida ou reconsiderada.14 Os Regulamentos de Robert têm uma dúzia de moções incidentais, as quais são reduzidas a cinco pela última edição dos Regulamentos da AG. Contudo, no geral eles ainda seguem os Regulamentos de Robert no que diz respeito às três moções que levam novamente uma questão para a assembleia.
Os Regulamentos da AG reconhecem sua diferença em relação aos protocolos de outras organizações, afirmando que devem “ser usados com um senso de reverência para com o propósito divino”.15
No entanto, como já observado por Robert, expressões como “amem e sejam gentis uns com os outros” não evitam rancor, e orientações criadas inadequadamente podem aumentar os conflitos ao invés de diminui-los.16
Quais são as diferenças entre os Regulamentos da AG e os Regulamentos de Robert?
Tanto os Regulamentos de Robert quanto os Regulamentos da AG surgiram da necessidade de governar reuniões deliberativas entre cristãos, sendo que os Regulamentos da AG o fazem de forma muito abreviada. Os Regulamentos da AG tentam preencher a lacuna substancial entre eles e os detalhes dos Regulamentos de Robert afirmando que questões não definidas nos Regulamentos da AG ficam a critério do presidente da assembleia e, se necessário, podem ser sujeitos a um voto da assembleia para derrubar a decisão do presidente.17 Além disso, eles permitem a suspensão destes regulamentos por um voto de dois terços da assembleia.18
Os Regulamentos da AG diferem especificamente dos Regulamentos de Robert em pelo menos três tópicos importantes:
Agenda
Os Regulamentos de Robert incluem um conjunto abrangente de orientações para estabelecer e modificar uma agenda.19 Eles afirmam que quando uma organização se reúne com pouca frequência ou passa vários dias reunida, é costumeiro que o coletivo adote uma agenda. Durante o processo de adoção da agenda, delegados podem propor mudanças à agenda, desde que recebam votos da maioria. Após a aprovação inicial de uma agenda, ajustes adicionais à agenda exigem os votos de dois terços dos delegados.20
Já os Regulamentos da AG fazem uma única referência à palavra “agenda” — que aparece como parte dos deveres do presidente — afirmando: “O presidente conduzirá os vários relatórios de comissões e itens administrativos na agenda aprovada.”21 Embora uma prática informal na Assembleia da AG possa permitir que delegados proponham mudanças à agenda, não há menção nos Regulamentos a como a agenda é criada, modificada ou aprovada.
Nomeações
Embora tanto os Regulamentos de Robert quanto os Regulamentos da AG apresentem um processo para determinar uma comissão de nomeação no processo eleitoral, os Regulamentos de Robert exigem que “após a comissão de nomeação apresentar seu relatório, e antes que a votação para os diferentes cargos seja realizada, o presidente deve pedir por novas nomeações por parte da plenária [isto é, de todos os delegados que não compuseram a comissão]”.22
Em contraste, os Regulamentos da AG limitam estritamente a capacidade da plenária de participar do processo de nomeação, colocando o processo inteiro de nomeação nas mãos da comissão de nomeações. Ao contrário dos Regulamentos de Robert, eles proíbem que os delegados façam nomeações da plenária, deixando-os com três opções para tratar de nomeações da comissão: (1) votar a favor de uma nomeação; (2) votar contra uma nomeação; ou (3) encaminhar toda a lista de nomeados de volta à comissão de nomeações para reconsideração. Em nenhum caso, porém, são permitidos comentários ou debates a respeito das nomeações.23 Isso significa que os delegados não têm como saber por que alguém quer encaminhar toda a lista de nomeados de volta à comissão, alimentando boatos a respeito de todos na lista.
Emendas
A sétima edição dos Regulamentos da AG acrescenta novos requisitos importantes para moções de emendas, de modo que as emendas propostas “podem ser encaminhadas a uma comissão permanente se essa comissão se reunir antes do fim da assembleia”. Após o encaminhamento, os delegados devem dirigir seus comentários sobre a emenda para a comissão. Após o retorno do item encaminhado à comissão, se um delegado estiver insatisfeito, “a emenda pode ser considerada como qualquer outra emenda”. No entanto, estes Regulamentos da AG não indicam quem “pode” encaminhar à comissão ou quem “pode” trazer a emenda de volta à discussão. Embora não seja algo explícito, o propósito desta alteração pode ser codificar um método informal de encaminhamento que é usado atualmente, o qual evita que toda a plenária se envolva na preparação de mudanças a documentos complexos como o Manual da Igreja ou a Constituição e o Regulamento Interno.
Conforme observado acima, tanto os Regulamentos de Robert quanto os Regulamentos da AG possuem uma moção subsidiária, permitindo que delegados decidam encaminhar uma moção para uma comissão. A última edição dos Regulamentos da AG parecem conceder ao presidente poder unilateral no caso de emendas propostas, permitindo-lhe encaminhar um assunto a uma comissão sem uma moção, apoio ou votos. Isso permite que o presidente da comissão aceite uma emenda proposta por alguém na plenária e a envie rapidamente para uma comissão.
Conclusão
Os Regulamentos da AG (a) eliminam provisões para que delegados participem diretamente da organização da agenda e das nomeações, (b) limitam a capacidade dos delegados de propor emendas a moções, e (c) concedem amplos poderes ao presidente da assembleia. O resultado é uma potencial restrição ao poder político da plenária em assuntos importantes, poder este que os Regulamentos de Robert lutam para proteger. Embora estes Regulamentos da AG permitam que os delegados derrubem a decisão do presidente com votos da maioria ou suspendam os regulamentos com dois terços dos votos, estas opções são barreiras significativas caso a plenária tenha a tendência a aceitar as decisões pessoais do presidente. Como resultado, embora o Manual da Igreja afirme que nossa “forma de governo é representativa”, os Regulamentos da AG investem o presidente da assembleia com poderes que tornam a denominação muito mais hierárquica que representativa — especialmente durante uma Assembleia da Associação Geral.
Notas
1.↑ Robert’s Rules of Order Born from Bickering in a New Bedford Church – New England Historical Society.
2.↑ U.S. Army Corps of Engineers Headquarters > About > History > Historical Vignettes > General History > 038 – Church Meetings.
3.↑ General Conference Rules of Order, 7th edition (2025) p. 2. All pagination references are based on the 6th edition (2015).
4.↑ Modelos de regulamentos internos para uniões e associações na Divisão Norte-Americana da IASD exigem o uso dos Regulamentos da AG, a menos que os regulamentos internos de uma associação ou união especifiquem o contrário. Cf. North American Division Working Policy, pp. 171, 191.
5.↑ GC Rules p. 2.
6.↑ GC Rules p. 3.
7.↑ Robert’s Rules of Order Newly Revised está agora em sua 12ª edição (Robert’s Rules) p. xlvi.
8.↑ Robert’s Rules p. xlvii
9.↑ Robert’s Rules §6:3.
10.↑ Robert’s Rules §13.1; GC Rules p. 7.
11.↑ Robert’s Rules §6:11
12.↑ Robert’s Rules §18:1.
13.↑ Robert’s Rules §6:15.
14.↑ Robert’s Rules §6:25.
15.↑ GC Rules p. 3.
16.↑ Cf. n. 2.
17.↑ GC Rules p. 3.
18.↑ GC Rules p. 10.
19.↑ Robert’s Rules §41.
20.↑ Robert’s Rules §41:63
21.↑ GC Rules p. 4.
22.↑ Robert’s Rules §46:18.
23.↑ GC Rules p. 5.