Com o governo Trump, trabalho humanitário adventista é interrompido, resultando em demissões em massa, vulneráveis abandonados e serviços sociais suspensos


Por Alexander Carpenter, Felipe Carmo e André Kanasiro | Artigo publicado originalmente na Spectrum Magazine. Tradução e adaptação do original em inglês por Felipe Carmo para a revista Zelota.

Decisões abruptas da administração Trump, como o congelamento da assistência estrangeira, desestabilizaram organizações de ajuda humanitária, seus trabalhadores e populações vulneráveis ao redor do mundo. A interrupção no repasse de recursos, alimentos e medicamentos impactou diretamente os esforços da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) em expressar sua missão e valores enquanto atuam em zonas de alto risco global. A medida ameaça comprometer anos de trabalho na construção de confiança entre os adventistas e as comunidades locais.

A Spectrum conversou com representantes da Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA) e da Adventist Health International (AHI), organização sediada em Loma Linda, Califórnia, para entender como esse cenário caótico está prejudicando o trabalho das equipes adventistas e das pessoas atendidas na América do Sul e África.

Um funcionário da ADRA, com ampla experiência no setor e que recebeu anonimato para falar livremente sobre os impactos do congelamento de verbas, afirmou que “a comida apodrecerá, e pessoas irão morrer”.

Denny Hong, diretor médico do Hospital Adventista de Kendu, no Quênia, alertou que a instituição enfrenta “uma enorme crise” devido a essas “mudanças políticas”. Segundo ele, isso já resultou em “demissões em massa, pacientes abandonados e serviços interrompidos”.

O que aconteceu com a USAID?

A ordem executiva assinada pelo presidente Trump em 20 de janeiro determinou uma “pausa de 90 dias na assistência ao desenvolvimento estrangeiro dos EUA” e iniciou um processo de revisão para alinhar a “indústria e a burocracia da ajuda externa” aos “interesses estadunidenses”. O segundo artigo da ordem estabelece que “nenhuma assistência estrangeira dos EUA será distribuída de forma que não esteja completamente alinhada com a política externa do Presidente dos Estados Unidos”.

Além disso, a Associated Press informou que a administração Trump planeja reduzir drasticamente o tamanho da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), que fornece financiamento significativo tanto para a ADRA quanto para a AHI. Relatórios indicam que o objetivo é cortar o quadro de funcionários da USAID de aproximadamente 10 mil para apenas 300.

Segundo a ABC News, “apesar das garantias verbais do Secretário de Estado Marco Rubio sobre a continuidade da ajuda humanitária essencial, o trabalho internacional de assistência e desenvolvimento financiado pelo governo dos EUA praticamente parou”.

A interrupção do trabalho humanitário adventista

O Hospital Adventista de Kendu, uma instituição de 170 leitos localizada próxima ao Lago Vitória, no Quênia, recebia fundos do Plano de Emergência do Presidente dos EUA para Assistência a Vítimas da AIDS (PEPFAR), por meio da USAID, permitindo o atendimento a pacientes com HIV/AIDS dentro de um programa de tratamento. Há cerca de uma semana e meia, porém, esse suporte foi completamente interrompido.

De acordo com Hong, o congelamento dos repasses afetou diretamente a vida dos 35 funcionários que atendem os 5.200 pacientes que dependem do hospital para tratamento regular. Embora a maioria das transmissões ocorra por meio de relações sexuais desprotegidas, entre 25% e 35% dos casos na África são resultado da transmissão do vírus de mãe para filho. Criado pelo ex-presidente George W. Bush, o programa PEPFAR reduziu significativamente esses índices, ampliando oportunidades para as gerações futuras e salvando mais de 25 milhões de vidas desde 2003.

Em entrevista à Spectrum, o presidente da AHI, Richard H. Hart — que também lidera a Universidade de Saúde de Loma Linda —, afirmou que a suspensão dos repasses está prejudicando diretamente os esforços da organização na distribuição de medicamentos para conter a propagação do HIV/AIDS em suas 20 unidades hospitalares na África. Isso significa, segundo Hart, que “a carga viral de muitas pessoas começará a subir novamente”. Esses pacientes voltarão a ser contagiosos. Para ele, o maior receio é que anos de progresso sejam perdidos e a pandemia de HIV/AIDS volte a sair de controle.

Locais onde a Adventist Health International presta serviços.

No dia 7 de fevereiro, a ADRA International divulgou um comunicado oficial destacando que, “há mais de quatro décadas, os escritórios da ADRA ao redor do mundo foram agraciados com centenas de milhões de dólares provenientes de diversos governos e da USAID, permitindo que a agência fornecesse ajuda essencial para salvar vidas de crianças, mulheres, famílias e comunidades necessitadas em todos os continentes.” A declaração ainda enfatizou que “esse apoio tem sido fundamental para o avanço da missão da ADRA: servir a humanidade com compaixão, justiça e amor, para que todos possam viver como Deus planejou.” Diante do novo cenário, a organização anunciou que está buscando ativamente fontes alternativas de financiamento para dar continuidade aos programas emergenciais que foram interrompidos.

Em resposta a perguntas da Spectrum, a ADRA confirmou que recebeu US$ 62.617.898,00 da USAID em 2023 para custear programas humanitários ao redor do mundo. O montante representou cerca de 64% da receita total da ADRA, que foi de US$ 96.362.929,00 no ano passado. Esse valor, no entanto, não engloba toda a rede de escritórios nacionais da ADRA. Grande parte dos recursos foi destinada a 1.085 projetos globais, incluindo iniciativas nas áreas de segurança alimentar, água, saneamento e higiene, serviços de saúde e assistência emergencial, beneficiando um total de 12.685.990 pessoas em nível mundial.

Questionado sobre o momento do anúncio da saída do presidente da ADRA International, Michael Kruger, ele afirmou que a decisão foi de caráter pessoal e não teve relação com fatores externos. Kruger, que anteriormente ocupava o cargo de diretor financeiro da ADRA, assumirá a posição de CFO no Adventist Healthcare White Oak, em Maryland.

O impacto no trabalho da ADRA Brasil

A suspensão da ajuda financeira da USAID impactou diversos projetos da ADRA Brasil, especialmente os serviços humanitários em regiões com um grande número de imigrantes venezuelanos, como Pacaraima, Boa Vista e Manaus, no Norte do país. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), entre 2015 e 2024, aproximadamente 568 mil venezuelanos entraram no Brasil pela fronteira norte, em Roraima, muitos deles se estabelecendo em Pacaraima e Boa Vista.

Com o apoio da Força Aérea Brasileira (FAB), famílias venezuelanas foram direcionadas pela agência humanitária adventista para outros estados brasileiros, onde puderam recomeçar suas vidas com novos empregos e moradia. (Foto: Arquivo ADRA Brasil)

A fonte anônima da ADRA observou que esse apoio da USAID – distribuído também em outros países – ajuda a estabilizar populações e a reduzir os incentivos que levam à migração em massa para a fronteira dos Estados Unidos.

Em fevereiro de 2024, a ADRA Brasil renovou sua parceria com a USAID para lançar o Projeto Providência, uma continuação do Projeto Alimentum, voltado para reduzir a insegurança alimentar de seis mil migrantes ao longo de 12 meses em Roraima e no Amazonas. No entanto, após a ação do governo Trump, no dia 29 de janeiro de 2025, a ADRA Brasil emitiu um comunicado anunciando a suspensão indefinida do projeto, citando uma diretriz da USAID.

David Nelson Sanchez, ex-diretor do Projeto Providência, havia sido contratado por 11 meses em 2024, mas, devido ao corte de verbas, seu contrato não foi renovado. Ele confirmou que a ADRA Brasil recebeu US$ 2 milhões naquele ano para assistência humanitária a migrantes, valor condizente com os relatórios de repasses financeiros da USAID. No entanto, segundo Sanchez, com o corte de verbas, a ADRA Brasil perderá US$ 1,5 milhão em 2025 apenas para o Projeto Providência. Outros projetos também podem perder seu financiamento.

Em entrevista à Spectrum, Sanchez alertou que a interrupção do financiamento terá graves consequências para a saúde dos imigrantes, sua estabilidade econômica e segurança alimentar. Apenas o Projeto Providência atendia, em média, 5.900 pessoas e empregava 28 funcionários, todos agora afetados pela suspensão. Além disso, a medida compromete a credibilidade da ADRA Brasil como organização humanitária. “Nem todos os [beneficiários] entendem completamente o que está acontecendo, e isso impacta a credibilidade daqueles que executam o projeto”, explicou Sanchez.

De acordo com o diretor da ADRA Brasil, Fábio Salles, a parceria da organização com a USAID começou em 2018, viabilizando ajuda a mais de 30 mil famílias por meio de seis diferentes projetos em Roraima e Manaus. Já o atual diretor de projetos da ADRA Brasil, André Alencar, estimou que, em seus seis anos de atuação, esses projetos beneficiaram cerca de 700 mil pessoas, com um investimento total aproximado de US$ 70 milhões.

Entre 2018 e 2024, mais de 270.000 famílias migrantes venezuelanas foram atendidas pela agência humanitária adventista. (Foto: Arquivo ADRA Brasil)

Questionado sobre a suspensão do financiamento, Alencar afirmou não ter “nada a declarar”, pois a organização ainda está avaliando os impactos da situação. A Spectrum tentou contato com outros representantes da ADRA Brasil no Amazonas e em Roraima, mas não obteve resposta e foi direcionada ao Departamento de Comunicação da ADRA Brasil. Pouco antes da publicação desta matéria, alguns relatórios que mencionavam a parceria entre a USAID e a ADRA Brasil foram removidos do site da organização.

Em resposta às perguntas da Spectrum sobre a suspensão do financiamento da USAID, o Departamento de Comunicação da ADRA Brasil agradeceu o interesse no tema e declarou: “Em breve, divulgaremos um comunicado oficial da ADRA Brasil sobre o assunto.”

O impacto no trabalho do AHI em África

Em 2011, Denny Hong se formou em música pela Universidade Andrews. Alguns anos depois, obteve seu doutorado em Medicina pela Universidade de Loma Linda e, em 2020, concluiu um Mestrado em Saúde Pública na Universidade do Alabama em Birmingham, um dos 20 melhores programas dos Estados Unidos na área.

Questionado sobre os motivos que o levaram a trabalhar no Quênia nos últimos cinco anos, Hong mencionou suas viagens missionárias durante a infância e os programas de intercâmbio que realizou na Universidade de Loma Linda. Ele afirmou que tanto ele quanto sua esposa, Jayeon, que também possui um Mestrado em Saúde Pública, sentiram-se chamados para uma vida dedicada a ajudar os outros. O casal tem três filhos. Segundo Hong, eles descobriram que “servir a Deus nos aproxima dele”. Ele acrescentou ainda que essa experiência traz uma “alegria verdadeira, a felicidade que vem do serviço”.

Denny Hong, Diretor Médico-Chefe do Hospital Adventista de Kendu.

Após dois anos trabalhando como clínico, Hong assumiu o cargo de diretor médico do Hospital Adventista de Kendu, da AHI, no interior da região oeste do Quênia. A história adventista na área remonta a 1906, quando missionários adventistas liderados pelo canadense Arthur Carscallen chegaram à região. Kendu Bay também é conhecida por ser o local de origem da família paterna do ex-presidente dos EUA, Barack Obama. Seu avô foi batizado por adventistas, embora mais tarde tenha aderido ao islamismo. Atualmente, a família Obama na região se divide entre adventistas e muçulmanos.

A suspensão do financiamento resultou na eliminação repentina de 35 postos de trabalho locais, gerando um impacto social profundo. Segundo Hong, cada funcionário sustentava entre 25 e 30 familiares, incluindo parentes mais distantes, o que envolvia a alimentação de três a quatro lares e até o pagamento de mensalidades escolares. Ele contou como comunicou a equipe sobre a perda do financiamento: “Sentamos todos na nossa igreja, oramos com eles e dissemos: ‘não sabemos como será o futuro, mas Deus sabe. Independentemente de recebermos ou não financiamento, precisamos manter uma perspectiva e atitude positivas.’”

Hong também abordou a questão da dependência de ajuda externa, um problema frequentemente apontado por críticos da assistência humanitária como consequência negativa de fazer o bem. Ele reconheceu que o auxílio estrangeiro pode “dificultar que um país desenvolva sua capacidade de cuidar de seus próprios cidadãos.” E acrescentou: “No fim das contas, os quenianos não podem depender dos estadunidenses para atender suas necessidades básicas.” Nesse sentido, Hong destacou que, em 2024, o governo queniano começou a adotar medidas para aumentar suas próprias fontes de financiamento para a saúde pública. Como sinal de maior autossuficiência, ele mencionou uma campanha de arrecadação na qual quenianos doaram US$ 150 mil para apoiar um projeto de saúde.

Hong ressaltou que o financiamento do PEPFAR não foi concebido para ser permanente, pois o programa deveria ser gradualmente descontinuado até 2027. No entanto, a decisão do governo Trump interrompeu abruptamente esse processo, deixando funcionários desempregados e pacientes sem acesso aos medicamentos necessários para evitar a transmissão do vírus HIV. Hong ainda acrescentou que “isso não é justo com essas pessoas”, referindo-se aos pacientes que “já viviam em condições de incerteza, ansiedade e estresse”. Agora, com o corte de financiamento, Hong afirmou que algumas pessoas no hospital temem que os pacientes possam ficar ressentidos e “simplesmente infectem todos que encontrarem, causando uma pandemia descontrolada”.

Pouco antes da publicação desta reportagem, a Spectrum conversou com Austin Dice, CEO do Hospital Adventista de Malamulo, no Malaui. Ele destacou os impactos individuais, institucionais e geopolíticos da suspensão da USAID. Ele destacou que muitos dos prédios do Hospital Malamulo, que possui 275 leitos, foram construídos com fundos da USAID nas décadas de 1980 e 1990. Quando a ordem executiva de Trump foi assinada, as organizações de ajuda humanitária que operavam no hospital trancaram todos os medicamentos e foram embora. Ele acrescentou que isso representou “um golpe devastador para a moral”.

Austin Dice, CEO do Hospital Adventista de Malamulo, Malaui.

Ecoando o que outros já disseram, leva um tempo para que os pacientes nesses contextos frágeis se aproximem e confiem no hospital e no sistema. Ele acrescentou: “agora eles aparecem e está tudo trancado.” Isso prejudica a confiança nos esforços adventistas para comunicar uma mensagem de saúde e plenitude. Ele também destacou que muitos desses pacientes “não conseguem ficar de três a seis meses sem a medicação. Eles terão outros efeitos colaterais e outras complicações relacionadas ao HIV que, em alguns casos, irão matá-los”.

Formado pelo Pacific Union College, Dice — que, junto com sua esposa Becky, sente-se chamado por Deus para a missão humanitária global — refletiu sobre a realpolitik de como a USAID também beneficia os interesses americanos como uma forma de soft power. Ele observou que essa ajuda ao redor do mundo funciona para “construir relacionamentos com as pessoas antes que surjam problemas.” Isso demonstra que os estadunidenses “se importam e querem estar envolvidos”. Ele acrescentou: “retirar essas ajudas causa muito mais efeitos negativos duradouros do que as pessoas percebem”.

Hart refletiu sobre o impacto negativo para a reputação dos EUA no exterior, bem como para os esforços missionários e humanitários adventistas ao redor do mundo. Ele reconheceu que, quando algo oferecido para ajudar é repentinamente suspenso, isso contribui para a falta de confiança. “Então o que isso faz com o espírito humano em termos de falta de confiança?”, perguntou. “É uma ferida profunda que levará um tempo para cicatrizar novamente.”