Regime de Nayib Bukele já soma mais de 85 mil presos sem provas ou julgamento, entre eles Alejandro Henríquez e José Ángel Pérez, que serão julgados no dia 29 de outubro após quase seis meses na prisão


Dayana*1 estava lavando roupas quando eles vieram. Acusando-a de estar envolvida com gangues por conta do carro novo (e registrado) de seu pai, a polícia nacional prendeu Dayana e a deixou com outras 200 mulheres em uma cela que só dispunha de 20 camas. Ainda convalescendo de uma cirurgia de apendicite, ela nunca recebeu atenção médica. A cela estava tão abarrotada que ela mal podia se mexer, e hematomas começaram a aparecer por conta da falta de circulação sanguínea; nada disso impedia os guardas de jogar gás lacrimogêneo nelas. Boa parte do tempo, elas eram alimentadas com comida vencida. Depois de seis meses, Dayana finalmente foi liberada, já que não havia evidências contra ela. Enquanto saia da prisão, os guardas tiraram fotos dela e disseram: “Você vai ficar livre só por alguns dias, logo vai voltar para apodrecer aqui de novo”. Agora, com um coágulo nos pulmões, sarna e um ciclo menstrual irregular, Dayana juntou-se à sua família deslocada, que tinha sido perseguida pela polícia por denunciar a prisão arbitrária de Dayana. O processo criminal contra Dayana ainda está em andamento.

Citlali* foi presa enquanto levava seus filhos para a escola. Ter tatuagens dos nomes deles foi o suficiente para que a polícia a levasse; o fato de ela ter sido injustamente acusada de um crime anos antes foi usado como justificativa para sua prisão por suspeita de envolvimento com gangues, mesmo tendo sido absolvida no caso anterior. Agora na prisão, ela tinha permissão para tomar banho a cada quatro ou cinco dias e passou 25 dias menstruada. Ela recebia apenas um copo de água suja para beber todos os dias, sendo que ela tinha uma pedra no rim. Citlali viu mulheres morrerem em suas celas após dias ou até semanas de negligência. Finalmente libertada, ela agora tem medo de sair de casa e ser presa novamente. Incapaz de encontrar emprego, ela não tem recursos para tratar seu rim; ela também tem um fungo no estômago devido à ingestão constante de alimentos em decomposição. O processo criminal contra Citlali ainda está em andamento.

Essas são apenas algumas das histórias encontradas no livreto Histórias à margem: sobrevivendo ao estado de exceção em El Salvador, publicado em setembro de 2023 pela organização católica de direitos humanos Servicio Social Pasionista. Em março de 2022, Nayib Bukele, presidente de El Salvador, estabeleceu uma ditadura e, desde então, prendeu mais de 85 mil pessoas por suposto envolvimento com gangues, entre elas Dayana e Citlali. Alegando travar uma guerra contra o crime organizado, Bukele ganha popularidade em grande parte da América Latina devido à percepção de aumento da segurança e diminuição dos homicídios durante seu governo em El Salvador. Muitos políticos de extrema direita em todo o continente agora seguem suas políticas e prometem construir prisões em massa em seus países de origem, fazendo do pequeno país da América Central atualmente o olho de um furacão que em breve poderá tomar conta do mundo.

O fenômeno Bukele

Nayib Armando Bukele Ortez, 44 anos, é presidente de El Salvador desde 1º de junho de 2019. Político e empresário, Bukele chegou ao poder apresentando-se como um outsider e prometendo resolver o problema de longa data de El Salvador com as pandillas — gangues criminosas que surgiram em Los Angeles e se espalharam por El Salvador na década de 1990, depois que muitos foram deportados de volta ao seu país natal. Durante décadas, grupos como a Mara Salvatrucha 13 (MS-13) e o Barrio 18 cresceram por meio de extorsão, roubo e assassinato de cidadãos salvadorenhos.

O primeiro ano de Bukele no governo pareceu ser um sucesso: a taxa de homicídios no país caiu mais de 50%. Mas, embora o presidente afirmasse que isso se devia às suas políticas de “mão de ferro”, estudos independentes sugeriram que “as razões para o sucesso podem estar em acordos informais e discretos entre as gangues e o governo” — algo que Bukele vinha fazendo desde 2014, quando sua aliança com as pandillas o ajudou a se tornar prefeito da capital San Salvador.

A lua de mel entre o presidente Bukele e as pandillas — da qual Trump esteve ciente desde pelo menos agosto de 2020 — não durou muito. Entre 25 e 27 de março de 2022, as gangues mataram 87 pessoas em retaliação por uma violação do pacto com o governo, conforme relatado por alguns líderes de gangues ao jornal salvadorenho El Faro. Em resposta, Bukele declarou estado de exceção, suspendeu alguns direitos fundamentais e autorizou a polícia e os militares a prender qualquer pessoa que considerassem “suspeita”, seja por exibir tatuagens ou parecer nervosa diante da polícia, chegando a estabelecer cotas para prisões diárias; não era mais necessário levar um indivíduo preso perante um juiz em até 72 horas após a prisão.

Além disso, Bukele assumiu efetivamente o controle do Legislativo e do Judiciário salvadorenho, o que lhe permitiu ser reeleito em 2024 — a Constituição de El Salvador não permitia reeleições consecutivas. Ele venceu com aproximadamente 85% dos votos dos 52% dos cidadãos salvadorenhos que realmente participaram das eleições.

Em 2022, a Human Rights Watch (HRW) e a organização anglicana Cristosal já haviam publicado um relatório com vários relatos de detenções arbitrárias, tortura, desaparecimentos forçados e mortes nas prisões salvadorenhas devido ao estado de exceção de Bukele. Em outubro de 2025, El Faro lançou uma edição especial sobre o legado catastrófico da ditadura de Bukele. Mas o estado de exceção permanece em vigor até hoje. Em resposta a essas e muitas outras acusações, o governo de Bukele promulgou a Lei de Agentes Estrangeiros, que estabelece uma tarifa de 30% sobre qualquer financiamento externo para organizações em El Salvador e concede ao governo “amplos poderes para monitorar, sancionar e dissolver organizações rotuladas como agentes estrangeiros”, de acordo com a HRW.

MOVIR

“É uma criminalização da pobreza”, afirmou Marina*, católica e ativista do Movimento das Vítimas do Regime (MOVIR), em conversa com a Zelota. Seu corpo tremia enquanto falava, mas seus olhos brilhavam com determinação — ela foi perseguida e até sofreu um atentado após denunciar o governo de Bukele por deter arbitrariamente um parente seu, mas continua ajudando o movimento. “Se o regime é legal, por que negar o devido processo legal às pessoas encarceradas?”

Liderado por Samuel Ramírez, de 59 anos, o MOVIR monitora pessoas que são detidas arbitrariamente ou desaparecem à força pelo regime, bem como mortes na prisão após tais prisões. Em 25 de setembro, por exemplo, o MOVIR anunciou a morte de um homem na prisão de Quezaltepeque, em La Libertad — cujo funeral foi realizado na Igreja Adventista do Sétimo Dia em Nahuizalco. A maioria das pessoas presas é proveniente de bairros pobres anteriormente dominados pelas pandillas.

“Isso me afeta como mulher”, afirmou Marina. “Como tenho várias condições de saúde e dependia do meu parente detido para fazer meu trabalho, minha saúde piorou significativamente”. Ela foi ameaçada várias vezes depois de se manifestar em defesa dos direitos humanos dos detidos. “Tenho que levar pacotes de comida que não tenho certeza se chegarão até eles e tenho que me envolver em processos obscuros que nos negam acesso aos procedimentos legais de nossos parentes encarcerados. Não posso nem vê-los, não sei se estão vivos ou mortos”.

Marina solicitou uma audiência especial para revisar a detenção de seu parente, para que ele pudesse aguardar o veredicto em liberdade. “Foi negada devido à falta de contratos de trabalho formais”, ela nos contou. “O tribunal me disse que o emprego no setor informal não é considerado um contrato de trabalho que justifique uma revisão da detenção”. De acordo com um documento divulgado pelo Banco Mundial em 2021, até 70% dos empregos em El Salvador estão no setor informal.

Reverdes

À medida que Bukele se sente mais à vontade com o estado de exceção, as detenções arbitrárias também estão sendo usadas como ferramentas de repressão política contra movimentos que se opõem à sua agenda. É o caso de José Ángel Pérez, de 55 anos, líder de uma cooperativa agrícola chamada El Bosque e pastor da Igreja Elim, e Alejandro Hénriquez, de 29 anos, advogado que coordena o movimento Rebelión Verde El Salvador (Reverdes).

Em conversa com a Zelota, Doris* e Giovani*, dois outros coordenadores católicos do Reverdes que atualmente estão no exílio, forneceram detalhes adicionais. Fundado publicamente em 2019, o Reverdes é um movimento decolonial, antipatriarcal e antimilitarista que presta assistência a comunidades locais em conflitos socioambientais. “Temos algumas estratégias de assistência, judiciais, comunicacionais e organizacionais-territoriais”, afirmou Giovani. Doris explicou que eles “colocam a academia a serviço dos territórios, ajudando a criar políticas públicas, realizando” peças de ativismo artístico, prestando assistência em litígios judiciais, etc.

O Reverdes também faz parte do Foro El Agua (Fórum da Água), uma plataforma de organizações salvadorenhas que lutam juntas pela justiça social e pela sustentabilidade da água. Entre outras coisas, o movimento participou da luta contra o Projeto de Desenvolvimento Urbano Ciudad Valle el Ángel, contra a recente reversão da proibição da mineração e dos debates que levaram à ratificação da Lei de Recursos Hídricos, que proíbe a privatização da água no país.

No entanto, o que os colocou em rota de colisão com Bukele foi uma questão aparentemente menor: a cooperativa agrícola El Bosque.

“Trabalhamos com El Bosque desde nosso início, mas especialmente desde 2022”, afirmou Doris. A cooperativa de 300 famílias, localizada em Santa Tecla, La Libertad, foi fundada em 1980 após a Reforma Agrária salvadorenha, quando “as propriedades pertencentes a indivíduos com mais de 500 hectares foram reorganizadas em cooperativas administradas pelos antigos trabalhadores dessas propriedades”.2 A cooperativa, localizada em uma região montanhosa e rural, plantava café e outros tipos de grãos. No entanto, uma crise financeira e uma praga de ferrugem do café na década de 1990 deixaram a cooperativa com uma dívida de US$ 200.000 com um banco.

Um documento da Reverdes sobre o caso forneceu uma linha do tempo mais detalhada. “Em 2001, a pedido do banco, a cooperativa contratou Luis Antonio Palomo Urbina como administrador da terra”, afirma o documento. Ele cobraria dos agricultores pelo uso da terra e, em troca, geraria renda para pagar a dívida. No entanto, em 2006, a cooperativa descobriu que, apesar de extrair madeira da área e cobrar dos agricultores pelo uso da terra, Palomo não havia pago a dívida, que subiu para US$ 372.000. El Bosque alega que Palomo levou os livros contábeis da cooperativa, o que impediu que eles o responsabilizassem. À beira do despejo, os agricultores foram salvos em 2009, depois que o município de Santa Tecla interveio e pagou a dívida em seu nome.

Mas os problemas estavam longe de terminar. Palomo processou a cooperativa alegando que os agricultores lhe deviam pela sua administração e, em 2017, a cooperativa foi condenada a pagar-lhe mais de US$ 856.000. Em resposta, El Bosque entrou com um processo criminal contra Palomo por corrupção e administração fraudulenta — ele foi absolvido em 2022, em meio ao estado de exceção de Bukele.

Em 6 de maio de 2025, a Cooperativa El Bosque recebeu uma notificação de despejo do município devido à sentença a favor de Palomo. Alejandro Henríquez, coordenador da Reverdes que já estava ajudando os agricultores, ajudou a organizar uma assembleia e uma coletiva de imprensa no dia seguinte. De acordo com o documento da Reverdes, policiais e militares estavam presentes no momento. Eles decidiram realizar manifestações pacíficas ao lado de uma avenida pela qual Bukele passava todos os dias, na esperança de que ele visse os cartazes e talvez parasse para conversar com os agricultores. Eles também escreveram uma carta pedindo a ajuda de Bukele no assunto.

Alejandro Henríquez discursa na assembleia do dia 7 de maio. Fonte: Movimento Reverdes

As manifestações começaram em 9 de maio e não houve incidentes graves até 12 de maio. Ao se dirigirem ao local da manifestação pela manhã, os veículos dos agricultores foram parados pela polícia, tiveram suas placas removidas e receberam ordem de retornar — caso contrário, os veículos seriam apreendidos. Os agricultores então caminharam mais sete quilômetros até o local da manifestação, entre eles mães e crianças. O protesto foi mantido, com mais policiais à sua volta que nos outros dias.

Manifestantes da Cooperativa El Bosque na manhã do dia 12 de maio erguem seus cartazes ao lado da avenida. Fonte: Movimento Reverdes

Sem conseguirem transporte de volta, já que quaisquer veículos visando transportá-los de volta às suas casas eram ameaçados pela polícia, os manifestantes decidiram passar a noite ali. Aproximadamente às 21h, sem qualquer provocação, mais de 100 policiais começaram a lançar gás lacrimogêneo na multidão e cercá-los. Ángel Pérez foi preso naquela noite, a despeito das mulheres da comunidade que o cercavam para protegê-lo da polícia; Alejandro Henríquez foi preso no dia seguinte enquanto chegava no escritório. Após surgirem rumores de que a polícia tinha uma lista com outros coordenadores do Reverdes, todos eles tiveram que deixar o país às pressas.

Policial tenta prender Alejandro Henríquez na noite de 12 de maio. Fonte: Movimento Reverdes

“Foi duro, porque o seu projeto de vida muda totalmente da noite para o dia,” disse Giovani. Ele falava rapidamente, enquanto seus olhos inquietos pareciam buscar sua próxima tarefa. “É duro deixar a família, companheira, pai, mãe, irmãos, amigos… O que mais dói no exílio é a incerteza de não saber o que vai acontecer com o seu projeto de vida, não poder lutar diretamente no seu próprio país… Você se sente impotente.”

“Eu penso nas crianças da comunidade que viveram a repressão e não têm atenção psicológica. O que elas vão dizer sobre a noite de 12 de maio quando forem maiores?” Doris falava mais lenta e deliberadamente. Seus olhos, brilhando com lágrimas, olhavam vagamente para o horizonte. “Estou carregada de medos, de incertezas, de sentimentos que não encontram um lugar no seu corpo… Mas qualquer sensação confusa que eu possa ter se multiplica por ter um dos meus dentro da prisão injustamente. Essa raiva justa é o que me dá força para seguir adiante”.

Tanto Alejandro Henríquez quanto Ángel Pérez foram acusados de desordem pública e resistência agressiva sem evidências que fundamentem tais alegações, enquanto evidências do contrário em vídeos e imagens foram rejeitadas pelo governo. Ambos foram colocados em prisão preventiva após uma audiência inicial, e, assim como as pessoas suspeitas de envolvimento com gangues, não podem receber visitas. Eles são considerados prisioneiros políticos pela HRW, e têm aguardado julgamento na prisão de Mariona, conhecida pelo seu tratamento desumano a prisioneiros.

“Para mim, Alejandro é o companheiro que compartilha com você, que te ensina; é a energia mais forte do grupo,” disse Doris. É difícil encontrar uma foto em que ele não esteja sorrindo. “Ele ocupa o espaço, é muito escandaloso,” brincou ela. Giovani o descreveu como um amigo que vivia com exagero e insanidade para fazer seu trabalho e ajudar as comunidades locais. “Para mim é um professor, porque estava me ensinando muito no tema da escrita. Foi ele que me botou no Reverdes”.

Ángel Pérez foi descrito por ambos como uma pessoa muito sensata, sempre em busca de reconciliação. “Ele é completamente diferente de Alejandro, é mais reservado, e é muito simples,” disse Doris. “Ele é de poucas palavras e muita ação”. Ela lembrou uma história que ele contou sobre quando foi atacado por pandilleros: “Ele estava indo cultivar e uns pandilleros o emboscaram para matá-lo. Don Ángel disse que eles seriam punidos por Deus se o matassem. Ele tem uma fé tão forte que virou as costas para os bandidos e seguiu caminhando”. Os tiros nunca vieram, e os pandilleros foram embora. “Sua igreja e comunidade estão esperando e lutando por ele, mesmo em meio ao assédio policial”.

Após quase seis meses presos, impossibilitados de ver qualquer amigo ou parente, o julgamento de ambos finalmente ocorrerá amanhã, no dia 29 de outubro.

A revista Zelota manifesta sua solidariedade a todas as vítimas do regime em El Salvador, e se manifesta em apoio ao MOVIR, Reverdes e seus membros. Fazemos coro com suas exigências de libertação imediata para Alejandro Henríquez e José Ángel Pérez, assim como outras milhares de pessoas encarceradas sem julgamento pela ditadura de Nayib Bukele.

Notas:

1.  Todos os nomes de vítimas neste artigo são pseudônimos (indicado por asterisco).

2.  Montero, E. (2023). The Lasting Development Impacts of El Salvador’s 1980 Land Reform. In: Valencia Caicedo, F. (eds) Roots of Underdevelopment. Palgrave Macmillan, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-031-38723-4_16